quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Alucinando Bourdieu: a estética do dinheiro da nova classe média brasileira.

Há uma nova classe média no Brasil. Ela emergiu nos últimos anos, embalada no crescimento econômico e na ampliação das políticas sociais do Governo Lula.

Crescimento econômico? Mas ele não foi pífio? Ora, você lê o mundo pelas lentes dos comentaristas econômicos? Crescimento, sim, claro. Não em índices chineses, por certo, mas ainda assim significativo. E por que significativo? Porque, nestas plagas, por um conjunto de demandas historicamente represadas (como aquelas expressas nos setores da construção civil e dos equipamentos domésticos básicos), um crescimento de 1% impacta tanto ou mais do que o crescimento de 6% em países nos quais o déficit de cidadania social é menor.
Que nova classe é essa? É constituída, em sua maioria, por ascendentes, pelos que ralaram muito. Pelos que foram adiante, em especial, por atividades desenvolvidas na iniciativa privada (em particular, naquela zona liminar entre a informalidade, a ilegalidade e a economia oficial). E eles invadiram a praia dos tradicionais e estão a perturbar o sono dos que se achavam garantidos em sua vã superioridade hierárquica.

Os membros da nova classe média querem coisas (artefatos, roupas, carros, celulares, etc.), casas remodeladas (olha aí o impacto na oferta de empregos) e alimentos para o corpo e para alma. Mas sem demora, tá? Como o cultivo do corpo em academia exige tempo, paciência e disciplina, algo que eles, com a pressa de conquistar um lugar ao sol, não têm, partem para as cirurgias plásticas nos açougues da nossa pujante medicina de mercado. E, para sufocar a culpa pela picanha do domingo e das pizzas e sandubas de todas as noites, dá-lhes iogurtes com danreguladores. Vá em qualquer supermercado e você irá notar a expansão desmedida das prateleiras destinadas aos “dans”...

Sim, sim, a nova classe média quer picanha e livro de auto-ajuda. Cerveja e CDs do Padre Fábio e da Aline Barros. Whisky e cirurgia plástica. Cabelos pintados, piercings e tatuagens. Viagens para Miami e um diploma universitário (se for de uma universidade pública, bom, mas, se não der, pode ser de um curso à distância de alguma fábrica de diplomas situada nos pampas gaúchos).

Eles e elas, como todos nós, anseiam por reconhecimento. Algo que lhes esteve sempre negado. E descobriram que o dinheiro é o caminho mais curto – e talvez o único que lhes reste – para sair da invisibilidade a que estiveram até agora condenados. E aí fazem a farra e incomodam – e como! – as classes médias tradicionais. Estas não os suportam, mas, azar!, têm que dividir seus shoppings, praias e aviões com eles. Não raro, cenas de preconceito explícito emergem com as sutilezas de sempre nessa terra tão cordial. E aí emerge uma crítica burguesa aos novos consumidores.

Como as mudanças não ocorrem de forma isolada, os tradicionais (que sonham em ser burgueses ou burgueses mesmos que se sonham refinados e de estirpe e não netos de senhores de escravos) se redefinem. E aí Pierre Bourdieu, a referência de dez entre dez cientistas sociais que buscam apreender as diferenças culturais entre classes, comparece com as suas observações para dar conta dos processos de distinção abaixo da Linha do Equador. Mas os trópicos, mais do que demodés, como definiu em obra seminal o nosso santo padroeiro, são acima de tudo lisérgicos. Alucinam mesmo, até um Bourdieu...

Mais do que distinção, como teimaria em propor um passional leitor do sociólogo francês, o que temos é a universalização dessa nova estética. A estética do dinheiro. Uma estética cujo horizonte, como direi?, “ético” é a rapidez. Aí os tradicionais precisam construir, para ontem, uma distinção. E dá-lhe pedagogia do consumo chique. Em cada esquina, uma Glorinha Kalil nos espreita. Em cada tela, um Renato Machado a nos falar da maneira correta de degustar um vinho.

Em Natal, cidade orgulhosa de sua modernidade (“temos restaurantes de primeiro mundo por aqui..”, dizem-me, com incontida alegria, alguns dos meus interlocutores), surge uma revista especializada em gastronomia a cada lua cheia. E dá-lhe revistas especializadas em consumo conspícuo. Custeadas por restaurantes que ofertam comidas tão caras e pretensiosas quanto ruins...

Colunas de vinho? Todo jornaleco tem uma em Natal. E revistas especializadas, destinadas aos VIPs, são lançadas com mais freqüência do que foguetes na Barreira do Inferno.

O que eu escrevi acima também não é muito lisonjeiro, não é mesmo? Mas quem disse que eu tenho sempre que ser politicamente correto? Bom, deixemos considerações menores de lado e vamos ao principal: há uma nova classe média emergindo no espaço social e ela vem impondo uma nova estética nas nossas paisagens. Este o ponto!
Bom. Essa nova estética de classe média, que os de cima, e de forma um tanto quanto invertida, a reproduzem, alicerça-se em uma consigna tão simples que foge à compreensão de nossos experts em cultura formatados por Sorbonne ou Harvard: de que adianta ter algum dinheiro, se não for para todo mundo saber?

E o dinheiro traz o belo. E o que é belo no universo da nova classe média? Vejamos... Ora, ora, beleza é uma loira (mesmo que de farmácia) toda siliconada. Belo é um bad boy tatuado balançando as chaves de um off Road. Cultivo do espírito? Ah, isso é ouvir a Aline Barros ou Padre Fábio. Arte? Arte é Calcinha Preta cantando “Você não vale nada, mas eu gosto de você...”

E a TV LCD novinha em folha, comprada em 24 prestações, serve prá que? Prá adquirir um pacote promocional daquela TV paga. E TV paga, sabes bem, é para assistir a nova temporada de Prision Break...

Ler? Ler mesmo só a Bíblia e os livros de auto-ajuda. A nova classe média realiza a consigna da campanha de Lula em 1989: não tem medo de ser feliz... Não precisa se esforçar, como os tradicionais, para fazer caras e bocas e demonstrar que leu e entendeu “Kant e o Ornitorrico”, do Umberto Eco.

A nova classe média, ao seu modo, é sentimental. Vai às lágrimas com as lições de vida da Ana Maria Braga. E ri emocionada com as sandices do Louro José. E delira nos shows do Roberto Carlos, se der. Mas, acompanha com ódio e admiração, as tragedias familiares televisionadas pela Tvs Record e SBT. Que o diga a audiência alcançada pelos deslocamentos do casal Nardoni...

O que essa nova classe média vai fazer com o se voto no próximo ano? Quem decifrá-la pode evitar ser massacrado nas urnas por ela...

2 comentários:

Guru disse...

Serão esses os sentidos do consumo desta nova classe média, reivindicando seu espaço ao se confrontar com as searas do primeiro-mundismo (Lopes Jr 2007) da outra média já consolidada?

Gostei muito do texto. Menos clipping do principado nacional e mais questionamentos do cotidiano, era o que eu pediria a todos os blogs que tratassem de sociedade! A "intelectualidade em geral" não enxergaria as mudanças de consumo que operaram na Avenida da Chegança (Nova Natal) nos últimos anos. Está muito ocupada na mesmície "Lula vs Serra", e quem vai além disso é acusado de "fazer o jogo da direita" ou, numa versão mais cruel do insulto; "rezar na cartilha de Alex Medeiros".

Unknown disse...

Caro professor!

Escrevi um texto no meu blog pessoal em resposta a esse seu último texto postado. Caso tenha interesse, fique a vontade para reproduzir ou não a minha réplica ao seu texto! o link de atalho para ter acesso é: http://tesourasocial.blogspot.com/2009/08/o-sociologo-encantado-o-efeito-de.html

Espero que goste da minha provocação teórica, rsrs

Abração,
Cadú.