quarta-feira, 31 de agosto de 2011

O narcotráfico ameaça a vida política e social latino-americana

Matéria publicada no sempre muito bom VALOR ECONÔMICO aborda a temática. Transcrevo parte do material mais aí abaixo. Peguei-no no blog LEITURAS DO FAVRE (espaço que você deve visitar diariamente, pois, lá, você encontra uma compilação de matérias interessantes publicadas na nossa imprensa.

América Latina está sob crescente ameaça das drogas
Por John Paul Rathbone e Adam Thomson Financial Times – VALOR


Em meio à alta vertiginosa dos preços das commodities na década passada, são notáveis duas exceções: a heroína e a cocaína.

Os dois produtos têm desafiado a inflação de maneiras que somente os microprocessadores para computadores conseguem igualar: os narcóticos estão mais baratas, em termos reais, do que há 20 anos. Esse é apenas um exemplo de um fracasso mundial nas tentativas de limitar a oferta de drogas ilegais. Embora a luta tenha custado bilhões de dólares e milhares de vidas, o comércio – e seus efeitos sobre aqueles que usam os produtos -, pouco diminuiu. A produção cresceu e o consumo mundial acompanhou a produção. De estimados 272 milhões usuários de drogas ilegais em todo o mundo, cerca de 250 mil consumidores perdem a vida a cada ano.

Os EUA continuam sendo o maior mercado mundial de drogas e a Europa está avançando rapidamente. É cada vez mais aceito que a política de proibição conhecida como “guerra às drogas” desfechada 40 anos atrás pelo presidente americano Richard Nixon “fracassou” – como afirma inequivocamente recente relatório da Comissão Mundial para Políticas Antidrogas -endossado por três ex-presidentes latino-americanos, um ex-secretário-geral da ONU e um ex-presidente do Fed (Federal Reserve, banco central dos EUA).

ONU estima que o lucro anual dos traficantes com a venda de cocaína no mundo chega a US$ 85 bilhões

Isso está criando ansiedade em Washington e outras capitais ocidentais. Mas, na América Latina, maior centro de produção e comercialização, as consequências desse fracasso continuam a crescer. Na América Central, os níveis de violência são piores, segundo algumas estimativas, do que no Afeganistão ou no Iraque.

A paz social e política está sob ameaça. “Um tsunami de tráfico de drogas abateu-se sobre a região”, diz Kevin Casas-Zamora, ex-vice-presidente da Costa Rica. Para o general Douglas Fraser, chefe do Comando Sul dos EUA, o crime organizado alimentado pelo tráfico de drogas é a mais grave ameaça na América Central.

Pouca gente sugere que a região esteja prestes a se tornar uma coleção de narco-Estados com governos usurpados pelos cartéis, mas esse é um risco para a Guatemala, Honduras e El Salvador, o mais gravemente afligido entre os países da América Central. A maioria das economias de um continente antes associado a dívidas externas e hiperinflação registra substancial crescimento econômico. Enquanto países desenvolvidos estão atolados em alto endividamento e baixo crescimento, a América Latina tornou-se um motor da economia mundial. Mas a maioria das democracias latino-americanas é jovem. O México, segunda maior economia na América Latina, fez sua transição democrática apenas dez anos atrás, o Brasil, a maior, há apenas 25 anos. Isso torna esses países particularmente vulneráveis à corrupção e à violência.

Pelo menos ficaram no passado os dias em que os países eram “certificados” pelos EUA com base em sua capacidade de reduzir a produção de drogas. A maconha é agora o maior plantio comercial na Califórnia, com vendas estimadas de US$ 14 bilhões por ano.

Mesmo assim, o Ocidente continua a impor considerável pressão sobre a região. Os latino-americanos têm suas próprias muito fortes razões para fortalecer o Estado de direito. Os benefícios econômicos e políticos “seriam enormes”, diz Agustín Carstens, presidente do Banco Central do México. O Banco Mundial estima que o custo do crime e da violência na América Central equivale a 8% de seu Produto Interno Bruto (PIB).

Mas muita gente na região cansou da abordagem tradicional, centrada em criminalização e repressão, mas que produziu escassos resultados. Com efeito, o consumo local de drogas está aumentando; o uso de cocaína na América Latina agora está quase igual ao nível europeu, embora ainda seja metade do americano.

Em primeiro lugar, a intensidade da violência que sempre eclipsa o comércio e as tentativas para controlá-la são grotescas: decapitação, desmembramento e chacina aleatória de inocentes. El Salvador, o país mais sangrento na região, registrou 71 homicídios por 100 mil habitantes em 2010, segundo estatísticas nacionais; no Brasil foram 25. Nos EUA, a taxa de homicídios foi inferior a seis; na Europa, não chegou a dois.

Em segundo lugar, combater traficantes pressiona países carentes de recursos que o mundo desenvolvido assume como universais. O continente continua a ser uma das regiões mais desiguais do mundo. Mesmo no México, membro da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o governo define sua taxa de pobreza em 46%.

Terceiro, essa luta cria, nas instituições repressivas, tensões que não conseguem suportar. O serviço policial mexicano foi efetivamente “balcanizado” pela Constituição, de modo que existem forças distintas para os 32 Estados do país e para cada um dos seus 2,3 mil municípios. Em algumas forças policiais na América Central, os agentes da lei têm de comprar munição com seu próprio dinheiro.

Muitas instituições em nações mais ricas sofreriam dificuldades se confrontadas com uma operação transnacional sofisticada que, de acordo com estimativas da ONU, gera US$ 85 bilhões anuais em lucros apenas com a cocaína – o equivalente a seis vezes o lucro da Coca-Cola no ano passado.

“O combate à corrupção e à droga é semelhante ao uso de uma borracha de má qualidade”, diz Malcolm Deas, da Universidade de Oxford, um historiador especializado em temas colombianos que tem assessorado presidentes desse país. “A borracha sempre fica suja e uns pedacinhos dela esfarelam.”

Em todo o mundo, está emergindo o reconhecimento de que as políticas proibicionistas do século passado não funcionaram e que, enquanto as drogas permanecerem ilegais e, portanto, fornecidas por empreendedores criminosos, é improvável que tais políticas sejam eficazes.

Até mesmo a presença de 100 mil dos soldados mais bem treinados pouco serviu para ajudar a estancar o fluxo de opiáceos provenientes do Afeganistão, que responde por cerca de dois terços da produção mundial de heroína. Mau tempo e pragas nas culturas contribuíram mais para reduzir a oferta, no ano passado, do que quaisquer esforços das tropas da Otan ou da polícia afegã.

Quanto à América Latina, a única história de sucesso até agora é a da Colômbia, e apenas quando aferida por uma queda do número de homicídios, mas não pelo volume exportado de drogas ilegais. Além disso, o sucesso de Bogotá deu-se graças a condições irreproduzíveis em outros lugares.

Primeiro, houve um grande afluxo de fundos dos EUA. Os US$ 6 bilhões gastos com o atual programa de ajuda ao Plano Colômbia, de combate ao narcotráfico e à insurgência, totalizam cerca de 6% do PIB da Colômbia em 2000 (ano em que o esquema começou). Por outro lado, a iniciativa americana equivalente no México soma US$ 1,4 bilhão, menos de 0,2% do PIB mexicano em 2010.

Em segundo lugar, nos 20 anos passados, Bogotá empreendeu um esforço sustentado e quase sobre-humano à custa das vidas de um número elevado de policiais e juízes. Bogotá beneficiou-se do fato de sua polícia ser unificada, quando começou a enfrentar seriamente o problema do crime organizado, algo inexistente em muitos outros países. “Se as forças policiais estão fracionadas, o narcotraficantes simplesmente as atacam seletivamente”, enfatiza o general Oscar Naranjo, comandante da polícia colombiana.

Em terceiro lugar, os EUA e a Europa disponibilizaram treinamento e apoio de inteligência no terreno, na Colômbia, o que seria impraticável na maioria da América Latina. Quando Álvaro Uribe, então presidente da Colômbia, aceitou, em 2009, autorizar os militares americanos a usar bases aéreas no país para ajudar as forças locais a caçar traficantes, isso provocou, em toda a região, protestos contra o “imperialismo ianque”. A Constituição do México proíbe que tropas estrangeiras operem no país, embora um pequeno número de militares aposentados do Exército dos EUA tenham sido recentemente mobilizados para lá para contornar tais obstáculos legais, segundo o “The New York Times”.

Finalmente, mesmo quando a repressão tem êxito, isso simplesmente exporta o caos para outros países. “Quanto mais sucesso temos com a interdição, mais o crime organizado vai para outros lugares”, diz Laura Chinchilla, presidente da Costa Rica.

Cada vez mais pessoas, e não apenas libertários e hippies, defendem uma reconsideração radical da política antidrogas. Os EUA, por exemplo, foram capazes de ignorar os piores efeitos do seu problema por muitos anos. Na prática, a atitude era de que, enquanto não houvesse bombas explodindo ou balas voando em Washington, Nova York ou Los Angeles, a violência não importava. Mas, num mundo mais globalizado, Washington está cada vez mais na defensiva – e defronta-se com a possibilidade de a violência atravessar a fronteira.

Não há clareza sobre que medidas deveriam ser tomadas. É pouco provável que mais dinheiro seja investido contra o problema, tendo em vista a condição das finanças americanas. Campanhas de prevenção contra o uso de drogas também não deram resultados satisfatórios. Elas “têm boa relação custo-benefício, porém não são muito eficazes”, destaca Mark Kleiman, um professor da UCLA, e autor do recentemente publicado “Drugs and Drug Policy: What Everyone Needs to Know”. O debate sobre a legalização está atolado em temores legítimos sobre o risco de crescimento das taxas de dependência.

Uma alternativa promissora, e barata, seria estrangular o fluxo de armas dos EUA para o sul. O presidente colombiano, Juan Manuel Santos, lamentou recentemente o fato de que revólveres desmontados podem ser despachados pela Fedex para seu país. No México, 70% das armas apreendidas vêm dos EUA. No entanto, esse debate nunca decola devido à posição de muitos americanos que invocam o direito constitucional de portar armas. Como disse Calderón, em visita a Washington em março: “Eu respeito a Segunda Emenda, mas pedimos: ‘não vendam armas a criminosos mexicanos’”.

Algumas autoridades na região acreditam que, enquanto elas tomam medidas contra o problema, o Ocidente parece menos disposto a fazer sacrifícios. O México, por exemplo, iniciou reformas, em sua polícia, que exigirão mudanças constitucionais, ao passo que nos EUA a proibição às vendas de fuzis semiautomáticos, que expirou em 2004, ainda não voltou a vigorar. Muitos acreditam que o Ocidente também fracassou no combate à lavagem de dinheiro. Como observou Carlos Slim, magnata mexicano das telecomunicações: “É injusto que os países produtores de drogas fiquem com todos os problemas e que os países consumidores fiquem com os lucros”.

Não há solução mágica capaz de resolver o problema das drogas. Porém muitos na região acreditam que, quanto mais tempo os países ocidentais se abstiverem de assumir um papel significativo na redução da violência associada às tentativas de frear o desejo de seus cidadãos de consumir drogas ilícitas, mais se tornará evidente que eles têm sangue em suas mãos. Forças de segurança e traficantes envolveram-se numa espécie de “corrida armamentista”, diz o relatório GCDP. “É preciso romper o tabu sobre o debate e reformas. A hora de agir é agora".

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