domingo, 26 de outubro de 2008
A quarta espada e o sendero alucinado
Foi na segunda metade dos anos oitenta que, no Brasil, passamos a acompanhar, com algum interesse, as notícias a respeito de uma organização guerrilheira peruana denominada “Sendero Luminoso”. Para aqueles que recém tinham saído da adesão à esquerda leninista, não deixava de ser curioso saber que a “opção revolucionária” ainda contagiava corações e mentes nesse nosso sofrido continente. Não poucos dos meus conhecidos de então olhavam com alguma simpatia o que ocorria na selva peruana, onde o exótico grupo maoísta tinha fincado as raízes de seu “foco”.
Trago na lembrança a reação de um grande amigo, ex-militante da esquerda clandestina, mas não armada, quando, em uma daquelas conversas sem rumo, sempre acompanhadas de uma boas cervejas, falei que, caso um grupo como o Sendero “tomasse” o poder (oh!, fantasia de tomar o poder, quantas piadas produzistes!), era caso de corrermos para alguma embaixada de algum “país livre”. Meu amigo ficou colérico e quase a nossa amizade termina ali. Eu fui tratado como um direitista, um renegado...
Com o passar dos anos, e com o aumento da presença do Sendero Luminoso no conturbado quadro político e social, nós, os poucos que acompanhávamos o desenrolar desse drama, percebíamos atônitos que, sim!, havia alguma chance do grupo guerrilheiro tomar o poder. E aí, com uma cobertura cada vez maior da imprensa, começamos a tomar conhecimento das brutalidades das ações do grupo e das reações do exército peruano. Como ocorre há séculos, os camponeses eram a maiores vítimas. Ora recrutados e ameaçados pela guerrilha; ora eram torturados, assassinados e com mulheres e filhas estupradas pelas forças do Estado. E tinha também os famigerados “apagões” de Lima. Aos poucos, o Sendero ia se fazendo presente no universo, pretensamente mais cosmopolita, onde vive a elite peruana.
Foi nesse tempo que começamos a ouvir falar do “Presidente Gonzalo”, o comandante desse singular grupo guerrilheiro. Abimael Guzman era o seu nome. E, nada modesto, era tratado como “a quarta espada do marxismo" pelos seus seguidores. As outras três, acreditavam eles, eram Marx, Lênin e Mão.
Bueno, mas aí, dilacerada por uma esquerda legal fragmentada e incompetente, quando não corrupta (Alan Garcia, hoje novamente presidente do país, estava terminando um mandato marcado pela incompetência na gestão econômica, a incapacidade de lidar com a guerrilha senderista e graves acusações de desvios de dinheiro público), e uma direita sem nada de novo a oferecer, a sociedade peruana se viu, no início dos anos noventa, diante de uma eleição presidencial que tinha como tema central o problema da guerrilha. E aí o Peru teve uma eleição singular: de um lado, o seu mais importante escritor, Mário Vargas Lhosa e, de outro, uma esquerda dividida. Terminado o primeiro turno, para surpresa geral, um desconhecido engenheiro agrônomo, nissei, chamado Alberto Fujimori, é consagrado como o adversário de Lhosa, derrotando partidos tradicionais como o APRA.
Fujimori ganha as eleições e o resto, acredito, você já sabe: promove um auto-golpe, dissolve o parlamento, “reorganiza” a vida partidária e “ganha” direito à reeleição. Mas enfrenta a guerrilha e, suprema vitória!, consegue prender Abimael Guzman. Ainda me lembro do homenzinho, apresentado de forma humilhante nos telejornais, em roupas de prisioneiro, em uma jaula.
Daí em diante, e não apenas pela sua prisão, mas também pelo tipo de caminho seguido pelo Sendero em suas ações, marcadas pela brutalidade contra os próprios camponeses que, em tese, dizia defender, o grupo foi definhando.
Pincei, em linhas bastante gerais, alguns elementos para o entendimento de um drama (o enfrentamento Sendero X Estado Peruano) de grandes proporções. Além de milhares de mortes (alguns falam em 70 mil!), vítimas das ações brutais dos dois lados, tivemos milhares de presos (algumas centenas ainda continuam nas prisões), milhares de torturados e todo um tecido social esgarçado.
Bueno, tudo isso me veio a mente após a leitura do livro “A quarta espada”, de autoria do jornalista Santiago Roncaglio. É um daqueles livros que você lê de uma sentada, como se diz. E eu tenho essa mania, hoje beneficiada pela transformação das livrarias em supermercado para vender livros. Pois é, quando estou viajando, vou a um Shopping, esse oásis da cidade moderna na apreensão arguta da crítica cultural argentina Beatriz Sarlo, e aí faço a festa: pego um livro, vou para o café (toda livraria tem um, não?) e aí leio tranqüilo até o fim. Foi o que fiz com o livro do Roncaglio, na última viagem a Brasília. Para compensar os prejuízos de autores e editoras com leitores como eu, faço comentários sobre os livros que leio. Mas só indico aqueles que realmente valem a pena! É esse o caso desse livro.
Paremos com a lorota! Coloco abaixo uma sinopse do livro, que está no site da editora (Objetiva).
No final da década de 60, havia no Peru mais de 70 grupos de inspiração marxista-leninista. Entre eles, o Partido Comunista do Peru pelo Sendero Luminoso de Mariátegui (sendero luminoso significa “caminho iluminado”), uma dissidência do Partido Comunista do Peru. José Carlos Mariátegui, autor de “Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana”, era o principal intelectual de esquerda do país. Fundador do Partido Comunista do Peru, defendia que a revolução no país não seria operária, mas camponesa, já que os oprimidos estavam no campo.
Seguindo a ideologia de Mariátegui, Abimael Guzmán foi o principal líder do Sendero Luminoso. Considerado até hoje um dos grupos terroristas mais perigosos do mundo, a luta armada entre os guerrilheiros e o governo peruano causou, no período de 15, anos quase 70 mil mortes. Mas como Guzmán se transformou na quarta espada do comunismo internacional, ao lado de Lenin, Mao e Stalin, e inspirou em seus seguidores um comprometimento absoluto?
Em A Quarta Espada, Santiago Roncagliolo, um dos principais nomes entre os jovens escritores peruanos e vencedor do Prêmio Afaguara de 2006, revela em detalhes como um professor de filosofia da Universidade de Huamanza se transformou no homem mais perigoso do continente americano.
O autor escreveu a reportagem a partir das informações obtidas com os próprios protagonistas do movimento − foram mais de três anos de pesquisas e centenas de encontros com militantes senderistas, com policiais que investigaram suas atividades e com carcereiros da prisão de segurança máxima da Base Naval da Marinha de Guerra do Peru, construído especialmente para abrigar Abimael Guzmán.
Ao longo da obra, Santiago Roncagliolo faz um retrato detalhado sobre a mente e os atos de Abimael Guzmán e das relações entre os diferentes membros do grupo terrorista peruano, tornando a reportagem ainda mais consistente ao revelar o que testemunhou durante sua juventude. Como a maioria da população peruana, por um bom tempo Santiago acreditou que o Sendero fora o único responsável por todas as atrocidades que ocorriam no país. No entanto, as pesquisas que fez para escrever A Quarta Espada mudaram suas convicções:
“A investigação me mostrou que a resposta do estado foi desproporcional, desordenada, e só fez aumentar a violência. Foi revoltante perceber que as duras ações militares foram desatadas em meu nome e dos de minha geração. Percebi que todos foram vilões na história recente do meu país, o Exército, o governo e o Sendero. E o resultado dessa Guerra só foi ruim de verdade para os pobres, os camponeses, que, em conseqüência, morreram inocentes, e aos montes. Para a sociedade, hoje, é mais fácil pensar que Guzmán foi um psicopata isolado e não que todo o Peru contribuiu para uma tragédia dessa proporção."
O autor acredita que Abimael Guzmán conquistou tantos seguidores em razão do poder e da eloqüência de suas idéias. Armado apenas com sua ideologia, sem sequer estar presente no campo de batalha, o movimento terrorista colocou um país inteiro em xeque durante 12 anos − sem apoio internacional, sem grandes fontes de financiamento e quase sem armas, o Sendero Luminoso conseguiu controlar 30% do território do Peru e contou com a participação, a tolerância e a compreensão de uma base social significativa.
“Me choca perceber que um tipo sem dinheiro, sem armas e sem apoio de governos estrangeiros possa ter chegado a criar a guerrilha terrorista mais letal de toda a América e de toda a história do continente americano. É o único homem que matou mais que o Estado, de modo que, até certo ponto, tem a mesma fascinação de poder e de mal que muitos personagens literários. Acredito que o livro possa ser lido inclusive sem que se saiba nada do Peru e sem que haja interesse pelo terrorismo. Em suas páginas, o leitor encontrará uma história sobre o poder e sobre o mal”, afirma o jornalista.
Saiba mais sobre o livro, acesse aqui o site da editora.
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