Maria Cazilda levantou cedo no último domingo de sua existência. Se a bala disparada pelo revolver do seu assassino ceifou sua vida exatamente as 6H25, é porque aí pelas 5 horas, não mais do que isso, ela já estava de pé. Morando na zona norte de Natal, essa cidade do “outro lado do rio”, ela deve ter feito tudo muito depressa para estar na parada de ônibus bem a tempo de pegar o veículo que faz a linha 79 (Parque das Dunas). Tomou correndo o último café da manhã de sua vida e partiu para o trabalho em um dia no qual a maior parte das pessoas da cidade, especialmente aqueles que pensam a política, dorme até mais tarde.
Envolta nas preocupações diárias e no balanço das contas que a vida teima em nos empurrar quando passamos dos quarenta (ela tinha 44 anos!), Maria Cazilda não deve ter notado que, na altura da Escola Rotary, um rapaz moreno de 26 anos, seu assassino, subira ônibus. Francisco Clerton bebera na noite de sábado. Já realizara alguns assaltos antes. À polícia, afirmou que o dinheiro do crime seria para adquirir alimentos para um filho. Verdade ou mentira? Não há o menor interesse nisso agora, a não ser que você seja o advogado do rapaz e queira dados para emocionar o júri. O certo é que Cazilda agitou-se, por medo ou por ter acordado de seus sonhos, e atraiu sobre si a atenção do assaltante (ou provocou também o seu medo!). O final já sabemos.
Nos dias posteriores à essa morte, os empresários dos transportes coletivos falaram em blecaute e os motoristas, em greve. Todos pediam segurança. A polícia realizou algumas blitzes e a imprensa alardeou mais informações sobre a insegurança na cidade. Estávamos em pleno período eleitoral. Os candidatos, obviamente, tocaram na segurança pública. Mas, como era de se esperar, com a profundidade de um pires de leite.
Ora, campanha eleitoral é feita por profissionais, certo? E profissionais da política, marqueteiros, jornalistas, assessores e toda a entourage que qualquer candidato de um grande partido deve ter, pertencem a um outro mundo. A um mundo no qual as pessoas não acordam as 5 horas da manhã para pegar ônibus. Não sabem, portanto, o que é o medo dos desvalidos. Sabem, sim, o que é o medo dos que têm bens a perder. Daí que falam tanto em câmeras para monitorar ruas e praças, por certo das áreas centrais e “nobres”, e tão pouco em intervenções concretas para enfrentar a violência que grassa na periferia.
Envolvidos em seus mundos, os partidárias das duas principais candidaturas a prefeitura de Natal não fizeram da campanha eleitoral um momento de diálogo com o universo social de Maria Cazilda. E quem mais perdeu com isso foi Fátima Bezerra. Se não tinha nada de novo a dizer, por que valeria a pena apostar nela? E ela poderia ter dito algo de novo. Poderia ter tentado dialogar com os que choram as mortes das Marias Cazildas. Não o fez. E não apenas por incompetência. É que a nossa esquerda é classe média além da conta, etnocêntrica que cansa e adora ser politicamente correta (o que, no Brasil, significa falar para o público dos mídias).
A morte de Maria Cazilda mereceu destaque na mídia local por duas semanas. Mas as mortes continuam. Em vans, ônibus, bares, ruas e praças de lugares nos quais os que saem de carreata de algum shopping da zona sul para “fazer campanha” na periferia jamais irão, senão aboletados em seus automóveis. Basta você ler os dois principais jornais de Natal na terça-feira para ter uma idéia do que está a ocorrer em algumas partes não muito iluminadas pela imprensa nesta cidade do sol. Mas quem iria tocar nesse mundo? Quem iria dialogar com ele? Quem seria solidário com as suas dores?
Em julho, ainda nos primeiros dias deste blog, escrevi alguns textos esatebelecendo uma relação entre segurança pública e administração municipal. Ali, em uma ou outra nota, apontei alguns elementos para um debate propositivo sobre a questão. Chamo especial atenção para o post intitulado Homicídios, tráfico de drogas e crise juvenil em Natal (RN): por que as candidaturas à prefeitura precisam se posicionar sobre essas questões. Em um outro texto, denominado O MUNICÍPIO E A SEGURANÇA PÚBLICA, já havia chamado a atenção sobre como a questão deveria ser tratada na disputa municipal.
Talvez eu seja presunçoso demais. Quem sabe, eu, que não sou especialista em marketing e em campanha eleitoral, não esteja a dizer asneiras além da conta? Mas, cá no meu cantinho, fico a pensar que se a esquerda brasileira não começar a dialogar com o universo social dos que têm medo, ficará fora do mundo. E de que medo eu falo? Do medo de perder a vida em um ônibus quando se vai ou se volta do trabalho, do medo de perder o pagamento de ajudante de pedreiro em um roubo, do medo de perder o filho ou filha para o tráfico de drogas...
Quantas vezes, após a morte de um jovem ou adolescente, ouvindo os soluços abafados do pai ou os gritos lancinantes das mães (esse seres mágicos que, em algumas classes sociais, parecem condenados ao sofrimento!), escuto expressões como: “era o que eu temia”, “ele se envolveu com quem não devia”, “eu não conseguia dormir pensando que algo de ruim ia lhe acontecer”, “foi a droga!”, etc. Essas mães e esses pais precisavam ver e ouvir alguém falar, com firmeza e convicção, de que, sim!, podemos ter uma saída. Que a Prefeitura Municipal pode fazer alguma coisa para retirar crianças, adolescentes e jovens dos círculos concêntricos da energia mortífera do tráfico de drogas. Não ouviram nada disso e deram as costas para um “agora, sim!” que não lhes dizia nada.
Os parentes, amigos e conhecidos de Maria Cazilda, quem sabe, ainda choram quando lembram dela. A cidade já a esqueceu. É mais uma vítima. Transformou-se em um número a mais na estatística da violência. A sua morte poderia ter acordado a muitos para a centralidade da segurança pública no debate político contemporâneo. Talvez muitos ainda chorem por não terem chorado pela enfermeira de 44 anos, assassinada no dia em que se comemora a independência do país, quando ia para o trabalho, vejam só!, que era cuidar de pessoas.
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