Reproduzo abaixo um artigo de autoria do jornalista Eugenio Bucci, publicado no Estadão de hoje. Bucci dispensa maiores apresentações (saiba mais sobre ele aqui), restando-me apenas acrescentar que a sua é uma das melhores escritas do nosso jornalismo. O artigo trata das eleições paulistanas e faz uma análise lúcida sobre o que está em disputa no pleito da capital dos bandeirantes.
Ah! Aproveito para elogiar o Estadão. Trata-se de um dos únicos grandes veículos de comunicação a disponibilizar todo o seu conteúdo para os internautas. Maravilha!
Conservadores e conservadores
Eugênio Bucci
Nesta eleição municipal, Gilberto Kassab carrega consigo as forças mais conservadoras do Brasil. Mais ainda, é carregado por elas. Não apóio sua candidatura, caudatária da tradição ancestral de recusar e, na medida do possível, impedir a força renovadora dos movimentos sociais. Numa sociedade tão desigual como a nossa, não há perspectivas de democracia e de justiça que não inclua a organização livre dos mais pobres e a afirmação material dos seus direitos. A autoria dos processos políticos não pode mais se restringir àqueles que sempre mandaram. O jogo do poder requer novos atores, deve ser compartilhado com aqueles que, até há pouco, não tinham vez. A ilusão conservadora reside justamente aí, na suposição autoritária de que pactos entre velhas oligarquias dão conta de superar os impasses atuais. No caso brasileiro, as respostas não estão mais no passado. Reinventar a política e promover lugar, voz e influência para os novos atores se tornaram para nós imperativos inescapáveis.
O dado chocante na eleição paulistana é que o argumento mais conservador que apareceu na arena até agora foi lançado exatamente pela candidatura que ainda procura falar em nome da renovação, a de Marta Suplicy. Quando decidiu pôr em debate aspectos da vida privada do atual prefeito, por meio de duas perguntas insidiosas - "Ele é casado? Tem filhos?" -, a campanha do PT e de seus partidos coligados reafirmou, ainda que de modo enviesado, os preconceitos mais sombrios da nossa cultura, aqueles que atam a noção de virtude pública ao tradicionalismo no modo de vida. Ao tradicionalismo sexual. Embora faça tudo para ostentar uma plataforma aparentemente inclusiva e igualitária, a candidatura da ex-prefeita demonstrou, com esse movimento, que não hesita em se aliar ao que pode haver de pior no discurso obscurantista.
Agora, cabe perguntar: de que lado, verdadeiramente, está o conservadorismo? Ele está no pacto que apóia Kassab, que pelo menos nesta campanha não agrediu a intimidade de ninguém - e o respeito às privacidades é uma exigência da renovação política -, ou está na propaganda de Marta Suplicy, que, embora tente se alicerçar nas periferias geográficas e políticas desta metrópole, reproduz e revigora valores atrasados, deseducando o eleitorado e exumando padrões comportamentais anacrônicos? Qual dos dois lados se mostra mais preparado para renovar a cultura política?
Para muitos, e muitos de boa-fé, a quem respeito, a pergunta é absurda. Alegam que o pólo dito "de esquerda" é o único pelo qual pode passar a superação dos nossos déficits democráticos municipais e nacionais. Tomam isso como uma verdade imutável e, em nome dela, negligenciam o resto. Emudecem sobre o que chamam de pecados menores à luz da grande responsabilidade histórica que recairia sobre os ombros dessa esquerda e apenas dela. Recusam-se a debater em público os erros de conduta de seus correligionários, como se o público fosse um campo minado. Qualquer exposição, qualquer reflexão aberta sobre o tema recebe logo o carimbo condenatório de um ato que dá munição ao inimigo - inimigo "nosso" e, portanto, inimigo do povo e do futuro. Assim, deixam de ver no público a instância máxima da democracia e consideram que os deslizes éticos, mesmo quando encerram podridões, devem ser dirimidos antes no interior do aparelho e só depois chegar à opinião pública. Se é que devem chegar aí.
É com tristeza que afirmo que a distância entre essa postura e o vale-tudo, tão próprio do conservadorismo pátrio, é mínima. Quando surge um caso de corrupção, o silêncio obsequioso se escuda numa espécie de rouba-mas-faz-obra-social. Agora, temos uma variante da mesma postura: a-campanha-é-preconceituosa-mas-pelo-menos-é-"popular". Ora, até onde vamos?
O proselitismo do "É casado? Tem filhos?" não é um episódio menor. Ele denota que, do ponto de vista desses estrategistas, qualquer cartada pode valer para derrotar o inimigo - inimigo mesmo, não adversário. Nesse sentido, é quase uma confissão. Mais que a privacidade de Gilberto Kassab, expõe uma tibieza de princípios na candidatura de Marta Suplicy. Que é ainda mais preocupante quando se leva em conta o destaque que as bandeiras comportamentais sempre tiveram na trajetória da candidata, cuja história foi abertamente traída pelas duas perguntas fatídicas.
Há muito já sabemos que, na política contemporânea, os fins não justificam os meios. Ao contrário, os meios determinam os fins. Jogar suspeitas sobre a intimidade de quem quer que seja não é um método aceitável para se conquistar um lugar neutro chamado poder. Esse lugar não é neutro, ele é necessariamente moldado pelas práticas adotadas para viabilizá-lo; os métodos que têm lugar no poder não têm como ser diferentes daqueles que foram empregados em sua conquista. A nossa história recente é pródiga em (maus) exemplos. Por isso, é preciso cuidado. Muitas vezes são os pequenos gestos que revelam o caráter de uma candidatura - e aqui estamos diante de um desses pequenos gestos. Ele indica que, para essa candidatura, a vitória eleitoral parece valer mais que a coerência em torno de bons princípios. Se é assim agora, o que mais não vem pela frente?
A ética lida com limites e os limites nem sempre são trágicos, espetaculares, grandiosos. Às vezes, eles são sutis. A linha que separa o legítimo do intolerável pode ser muito fina, quase imperceptível. Mesmo assim, ou melhor, por isso mesmo, não se pode desprezá-la. Há um ponto além do qual não se pode ir. Lamentavelmente, a campanha de Marta Suplicy foi além. Aí, não tenho como acompanhá-la. Desta vez, ela não terá meu voto.
Eugênio Bucci, jornalista, é professor da ECA-USP e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da mesma universidade
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