quarta-feira, 12 de maio de 2010

Sobre Pipa, quilombolas e meio ambiente

Recebi uma mensagem que faço questão de transcrevê-la aqui. Aborda questões importantes e que não podem ficar circunscritas às listas de e-mails. A autora é a Professor Julie Cavignac, do Departamento de Antropologia da UFRN.

Prezados,

Recebi a informaçao do site do Resort "Nova Pipa" a ser implantado na
comunidade quilombola de Sibauma que entrou com processo junto ao INCRA em
2005 e cuja area a ser titulada ainda encontra-se em discussao.

Nova Pipa

Além disso, me parece que o projeto em questao a ser instalado na orla
maritima e na embocadura do RIo Catu fere o Código Florestal (Lei no.
4.771, de 15 de setembro de 1965), artigo 2o, alínea “a”, item 1, que
estabelece como área de preservação permanente as florestas e demais
formas de vegetação natural situadas ao longo dos rios ou de qualquer
curso d'água desde o seu nível mais alto em faixa marginal, com largura
mínima de 30 (trinta) metros para os cursos d'água de menos de 10 (dez)
metros de largura.

Vejam o parecer conclusivo do relatorio antropologico elaborado em 2006:

"A titulação coletiva da terra foi vista, após haver várias reuniões
públicas, como uma necessidade, em primeiro lugar, para consolidação do
grupo cuja integridade encontra-se hoje ameaçada. Entre as razões
evocadas, precisa ser destacada a importância do território tradicional na
vida cotidiana, pois a coesão social passa necessariamente por um
compartilhamento de um espaço comum, permitindo a inscrição material da
história do grupo e o uso comum da terra; como vimos, o uso coletivo do
espaço natural e cultivado foi, durante o passado, uma estratégia
escolhida para que o grupo se mantivesse no local, a terra aparecendo como
essencial para a subsistência das famílias e a reprodução dos valores
comuns.


Para as famílias quilombolas, a titulação irá assegurar o domínio e a
posse de suas terras tradicionais. Além de suprir as necessidades
econômicas do grupo, a terra tem um valor histórico-cultural inestimável:
o território sustenta os processos que visam o reconhecimento e a
elaboração de uma história diferenciada em nível local. Garante a
continuidade das famílias quilombolas, sua reprodução física, além de
permitir o reconhecimento político e a valorização de um grupo
historicamente marginalizado e que continua ser alvo de preconceitos.
Como já mostramos, a identidade coletiva deve ser levada em conta na
questão fundiária: elementos diferenciais como a identidade étnica, a
ancestralidade comum, as formas de organização social e política
distintas, os elementos lingüísticos e religiosos devem entrar em
consideração na discussão da demanda territorial a ser realizada pelos
quilombolas.


Como mostra a pesquisa histórico-documental e com referências à memória
genealógica, Sibaúma é ocupada de maneira contínua desde, pelo menos, os
meados do século XIX, com contínuos conflitos territoriais. Temos,
também, documentos declaratórios de cadastro de imóvel rural datados de
1978 e 1981, em nome de moradores da comunidade, atestando uma ocupação
agrícola que foi que historicamente interrompida a partir dos anos 1980.
A titulação do território da comunidade quilombola de Sibaúma se adequa
ainda aos objetivos do Programa Brasil quilombola, que visa a melhoria
das condições de vida e ao fortalecimento da organização das comunidades
remanescentes de quilombos por meio da promoção do acesso aos bens e
serviços sociais necessários ao desenvolvimento, considerando os
princípios sócio-culturais dessas comunidades. As políticas públicas a
serem implementadas devem ser voltadas para o desenvolvimento da
comunidade, respeitar a singularidade cultural do grupo e as práticas
sociais tradicionais e comunitárias.
Das razões para titulação:

1. A ocupação ancestral do território pelo grupo foi comprovada
documentalmente e pela pesquisa etnográfica. Apesar de não haver títulos
de propriedades emitidos em nome dos quilombolas, existe um uso contínuo
do território requerido; o que tem como conseqüência a aplicação do
direito constitucional. Até a década de 1980, a população tirou seu
sustento do rio (água potável e pesca), dos terrenos cultiváveis e das
matas nativas. A partir dessa época, os moradores sofreram pressões por
parte do atual proprietário da “Agro Comercial de Bovino ldta.” (Milson
dos Anjos) para sair dos seus lugares tradicionais de moradia e foram
impossibilitados de ocupar certas áreas indispensáveis à reprodução de um
modo de vida tradicional, o que acelerou a desintegração do grupo;

2. Existem registros orais comprovados documentalmente apontando que,
desde a década de 1920, houve uma pressão por parte dos herdeiros de
Miguel Soares Raposo da Câmara (1838-1923) para vender partes do
território ocupado pelas famílias quilombolas. Por outro lado, nos anos
1980, há comprovação do uso de má fé na cessão das terras por parte de
compradores, entre outros, de Walter Soares de Paula;

3. A população local não pode usufruir plenamente dos recursos naturais
necessários para o seu sustento (rio, mar, mata). Há mais de vinte anos, a
comunidade sofre com as conseqüências de um desenvolvimento predatório,
com o desmatamento da maior parte do seu território tradicional (Milson
dos Anjos), de danos irrecuperáveis no mangue e no rio após a construção
de viveiros de Camarão (Francisco de Assis Medeiros) e de uma exploração
imobiliária desenfreada, o que representa um perigo para a integridade do
grupo e sua reprodução. De fato, os quilombolas foram lesados com esses
danos ambientais e por diversos compradores que cercaram os terrenos e o
acesso ao rio. Devem ser indenizados;

4. As terras que foram cedidas por membros da comunidades e que
encontram-se de posse de indivíduos externos à comunidade não atendem à
função social da terra, pois não são produtivas e servem à especulação
imobiliária. Por tanto, recomenda-se a aplicação da legislação em vigor
para o benefício de uma população que encontra-se numa situação de risco
social;

5. São necessárias ações urgentes visando a preservação do meio ambiente
que encontra-se seriamente degradado e a aplicação das diferentes
legislações ambientais, pois parte da comunidade esta situada num parque
estadual, numa APA e em terras da União (mar e rio). Também, recomenda-se
que haja uma aplicação firme das leis ambientais no sentido da melhoria
das condições de vida atuais e futuras das populações locais;

6. São necessárias ações urgentes de preservação de uma história e de uma
cultura diferenciada, sendo do dever do Estado em preservar um patrimônio
histórico nacional (sítios arqueológicos) e, conforme a legislação em
curso, sobretudo àquele pertencendo a remanescentes de quilombolas ;

7. Recomenda-se que o processo em curso deve ser acompanhado por
representantes de órgãos governamentais, no que diz respeito a discussão
da proposta do território a ser identificado bem como elaboração de
projetos coletivos. Também, é necessário que haja um empenho do poder
público na aplicação das decisões judiciais já tomadas;

8. Finalmente, medidas devem ser tomadas para impedir que se continue a
venda de terrenos na área em discussão, para frear a especulação
imobiliária já importante."


"E agora?" Quem pergunta é a professora Julie.

3 comentários:

Jolúzia disse...

OLá! Gostaria de saber detalhes sobre a disputa interna na comunidade onde, pelo menos há alguns anos, existiam duas posiçòes ferozmente antagônicas, e em uma audiência pública que assiste á convite da Profa. Julie, um consenso parecia IMPOSSÍVEL!As pessoas quase se mataram!!!!

Guru disse...

Sobre Pipa nããão, sobre Sibaúma!

Jolúzia, o relatório de Julie está disponível na biblioteca setorial do CCHLA e aborda com mais detalhes esta disputa interna. Há também a dissertação de Ciro, que talvez já esteja na mesma biblioteca, mas ela não foca nessas disputas; e um TCC-documentário de jornalismo da UFRN também que toca o conflito. De fato, a história é meio intricada e não cabe em poucas linhas. Resumidamente, duas associações possuíam projetos distintos, inicialmente incompatíveis, para o futuro do grupo. Com o tempo e o acirramento das disputas, decidiram por uma "trégua", não sei até que ponto duradoura. Eu não tenho frequentado Sibaúma, mas pelo fim de minhas pesquisas (2 anos atrás) por lá percebi que o antagonismo tinha dado lugar a um ambiente um tanto quanto mais equilibrado e resignado entre as associações. Coisas chatas como ameaças, até onde sei, terminaram. Não tenho idéia de como vão lidar neste momento com este resort que, pelo vídeo promocional, vai suprimir a maior parte do espaço ocupado pelo grupo. Um fato notável, entretando, é que nenhum dos "mega-empreendimentos" de turismo do RN saiu do papel.

Thiago Leite disse...

Atualizando a questão dos conflitos internos, inclusive remontando a uma observação feita pessoalmente por Ciro (que observou que as brigas em Sibaúma, brigas de famílias etc., vêm de muito antes da questão das terras), está ocorrendo esta semana uma terrível confusão, com ameaças e agressões, cujo estopim foi a distribuição de cestas básicas.

A COEPPIR sugeriu em reunião na comunidade que o presidente da Associação desvinculassee o pagamento mensal referente à Associação da cota referente aos gastos com a entrega das cestas básicas, pois são duas coisas totalmente diferentes, e aqueles que não podem pagar no momento a mensalidade ficam sem a cesta. Tudo isso foi motivo de briga.

Parece que tanto a questão das terras quanto a das cestas (e talvez outras) são apenas pretextos para se perpetuarem conflitos internos que vêm de várias gerações atrás... Se a comunidade não começar a resolver esses conflitos internos e trabalhar unida pelos seus direitos, acabará sumindo do mapa sob empreendimentos do tipo Nova Pipa.