Ontem, aí pelas cinco da tarde, já cansado de tanto procurar um mísera tomada para ligar o meu ultrapassado notebook no Aeroporto Afonso Pena, em Curitiba, decidi adentrar na livraria única livraria do pedaço (na verdade, não era bem uma livraria, mas essa coisa inodora e sem viço chamada muito apropriadamente de, aargh!, bookshop...). Pois bem, folheei um pouco as nossas inodoras revistas semanais, e vi que não tinha nada nelas que me garantisse uma leitura para algumas horas de vôo. Procurei, então, pelos livros. Pululavam os de auto-ajuda e religiosos. Já ia saindo desanimado quando me deparei, em uma mesa, com o livro Carlota Fainberg, de autoria do escritor espanhol Antônio Muñoz Molina. Como já tinha lido algo do autor, li com interesse a orelha do livro. A decisão de comprar foi imediata. Dirigi-me ao caixa, rogando aos céus que o livro custasse menos de trinta reais. Não acreditei quando a moça do caixa disse-me o preço: oito reais. Quase volto e compro todos os exemplares disponíveis.
De que trata o livro? Boa parte dele, das agruras de um professor universitário de literatura espanhol, preso por uma nevasca no aeroporto de Pittsburg, e tendo que ouvir as peripécias sexuais de um compatriota que lhe aluga a escuta pelo simples fato de ser também espanhol. Aos poucos, o universo pessoal do aparentemente chato e inoportuno compatriota vai invadindo a alma do pacato professor, candidato a uma cátedra na universidade americana na qual rala já alguns anos.
O professor do romance é um desses tipos que encontramos todos os dias nos corredores de nossas universidades. Um cara sempre disposto a se mostrar pouco para não se comprometer e muito preocupado em fazer boa figura perante à, como direi?, “comunidade”. Por isso mesmo, tem que ser, sempre, insosso e... moderno. O que significa, para os padrões universitários norte-americanos da primeira metade da década de 1990, ser politicamente correto...
Mas aí aparece, na conversa meio atrapalhada do chato compatriota, uma certa Carlota Fainberg, uma misteriosa dama com quem o chato teria tido um caso em um de suas viagens de negócios. O chato é um ser politicamente incorreto, que, para horror do professor, não esconde a sua relação pouco heterodoxa com as mulheres. Analisa-as com olhar clínico... Qual a sua atividade? Viajar o mundo para comprar hotéis em decadência para o grupo empresarial espanhol para o qual trabalha. Em uma Buenos Aires do final da década de 1980, em um hotel outrora glorioso, mas à altura em franca decadência, mantém um tórrido romance com a ex-atriz, a personagem título do romance.
O professor, na espera que a nevasca passe e possa enfim pegar um avião para Buenos Aires, onde participará de um evento literário dedicado à obra de ninguém menos que Jorge Luiz Borges, é envolvido na trama. A estória parece banal, não é? Mas o autor, com maestria, transforma o texto em uma crítica corrosivo ao ambiente acadêmico no qual vicejam os chamados “estudos culturais”. Os joguinhos do mundo acadêmico aparecem nas reflexões que o professor faz sobre as disputas políticas do seu departamento. Especialmente impagável é a descrição que ele faz da ascensão da teoria queer à condição de aposta científica séria nas universidades americanas.
O livro pode ser lido como um complemento à corrosivo texto, escrito no início desta década, por Pierre Bourdieu e Loic Wacquant a respeito dos “estudos culturais”. O texto em tela, se não me engano, publicado no Brasil com o título de “Astúcias da razão imperialista”, mostra o engodo da incorporação, na periferia, de teorias pseudo-progressistas nos centros acadêmicos dos EUA e da Europa.
Bom. Duas horas depois, após rir sozinho durante todo o vôo entre Curitiba e Rio de Janeiro, tinha devorado o livro de Antonio Muñoz Molina.
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