quarta-feira, 30 de março de 2011

Polícia? Para quem?

O texto abaixo, publicado no CADERNOS CRH, merece a atenção de todos quantos se preocupam seriamente com a questão da segurança pública no país. Os autores, Jacqueline Muniz e Eduardo Paes-Machado, dispensam apresentações. São estudiosos, como se antigamente, mais do que gabaritados.

Polícia para quem precisa de polícia: contribuições aos estudos sobre policiamento

Jacqueline Muniz e Eduardo Paes-Machado

INTRODUÇÃO

O campo dos Estudos sobre Policiamento (Policing Studies)1 ou da Sociologia da Força Pública, como defendeu Jean Paul-Brodeur (2004), desenvolveu-se nos Estados Unidos, na segunda metade dos anos 60, e no Reino Unido, na década de 80, estendendo-se depois a outros países do mundo. Em ambos os países, o interesse acadêmico pelo fenômeno do policiamento foi despertado pelas crises de hegemonia e erosão da legitimidade das agências policiais, resultantes da ascensão de movimentos sociais de negros, pacifistas e operários desempregados. Dessas mobilizações e das respostas policiais violentas que lhes foram dadas de modo frequente emergiram grandes debates públicos acerca do papel dessas agências como violadoras de direitos. Tais questionamentos se perderiam, provavelmente, em generalidades, ou não gerariam uma vertente produtiva de pesquisa sobre a polícia, não fosse a crescente irradiação intelectual da teoria da rotulação (ou reação social), com seu foco nas instituições disciplinares e agências de controle social (Becker, 1963). Segundo esta abordagem, tais agências têm um papel paradoxal, porque contribuem ativamente para produzir comportamentos desviantes e delituosos que deveriam, por princípio, coibir. Ao chamar a atenção para a autonomia relativa das agências de controle social para decidirem, interpretarem e aplicarem códigos normativos e legais segundo critérios próprios e valores dominantes na sociedade, a teoria da rotulação contribuiu para a construção conceitual do poder discricionário e do uso (policial) da força, os quais apresentam-se como as chaves definidoras para os estudos sobre policiamento.2 Não é de estranhar, assim, que os estudos sobre policiamento - com seu foco em práticas capilares de governo, operadas por "políticos de esquina", como foram denominados os policiais (Muir Jr., 1977), e capazes de influenciar as percepções de cidadania - sejam liderados, no mundo e igualmente no Brasil, por cientistas sociais3(Manning, 2005). Nessa linha, e como bem disse David Garland a respeito da criminologia, os estudos sobre policiamento usam amplamente as teorias, métodos e técnicas de pesquisa das ciências sociais. Dado o seu caráter poroso e intersticial, eles se nutrem e, ao mesmo tempo, contribuem para abrir perspectivas, experimentar e agregar conhecimentos aos repertórios dessas disciplinas. Mais parecidos com certas divindades hindus, com múltiplos membros, caras e cabeças, do que com os monólitos celtas, o policiamento e a polícia são fenômenos complexos que, na suas inter-relações com outras expressões de controle, regulação e coerção, constituem um terreno de pesquisa fascinante e desafiador. Para o entendimento deste campo, vale a pena retomar a diferença central, ainda pouco compreendida entre nós, entre policiamento e polícia e propor uma tipologia das modalidades assumidas por esses fenômenos, capaz de subsidiar a sua compreensão na sociedade brasileira.

POLICIAMENTO

O fenômeno do policiamento tem a sua inteligibilidade articulada à noção de controle social e suas dinâmicas descontínuas na vida social. Nesse recorte, ele pode ser visto como um expediente particular de controle pela ênfase no seu caráter instrumental, isto é, na sua capacidade de produzir efeito inibitório e o mais imediato possível sobre os acontecimentos e as atitudes de indivíduos e grupos. Constitui-se como um variado repertório de meios (vigiar, regular, impor, fiscalizar, patrulhar, guardar, conter, etc.), aplicados através de certos modos, para determinados fins: a sustentação de um status quo, de uma determinada visão e expectativa de ordem que se deseja obedecida e, em alguma medida, consentida pelos indivíduos ou grupos policiados. A natureza política do policiamento, como bem assinalou Reiner (2004), se expressa em um agenciamento de meios visando a sustentar o exercício de certos tipos de poder e de autoridade, que podem ir do extremo da sujeição à obediência negociada. Se isso serve como ponto de partida, então pode-se afirmar que os estudos sobre policiamento contribuem para melhor compreender os dispositivos de coerção e coesão social e seus efeitos, e, com isso, distinguir as práticas sociais de controle e regulação, seus sentidos e funcionalidades, já que nem todo expediente de controle corresponde às formas instrumentais de policiamento. O policiamento caracteriza-se, assim, como uma expressão pragmática, funcional, utilitária e invasiva do como sustentar a submissão, sob algum consentimento, às regras do jogo, vistas como objeto de enforcement (ou aplicação da lei), ou a uma determinada ordem pactuada ou não, com o recurso à coerção respaldada pela força. Observados no seu plural, especialmente nas sociedades complexas, os policiamentos e suas práticas ultrapassam a administração do Estado, sendo-lhe historicamente anteriores. Tal evidência é relevante, uma vez que se podem reconhecer práticas de policiamento em sociedades sem Estado, assim como práticas de policiamento que não são administradas por agências estatais. A anterioridade das práticas de policiamento à emergência de burocracias especializadas e estatais na sua administração, põe em relevo duas questões caras à compreensão desse conjunto de práticas sociais de controle e regulação (Bayley, 2002; Reiner, 2004). A primeira, é a de que o policiamento não constitui um lugar hegemônico do Estado. Sobretudo quando se considera que a ambição do Estado, desde seu surgimento, é o monopólio legal e legitimo da força e, por conseguinte, das práticas de policiamento que expressam e sustentam sua soberania sobre um determinado território e população, assim como dos dispositivos de governo, sobretudo as forças armadas e polícia, as quais são objeto de uma espécie de duopólio. A segunda, como decorrência, é que as agências especializadas estatais, as polícias, também não possuem, ainda que isso não seja abertamente assumido, por uma estratégia de legitimação e ampliação de poder, o monopólio das práticas de policiamento. A possibilidade de uma teoria do policiamento e da polícia começa com essa distinção, posto que ela permite compreender que, por um lado, a polícia não se explica por suas funcionalidades ou aplicações e, por outro, que o policiamento não é apenas uma expressão de governos estatais. Em poucas palavras, em lugar de estar restrita a uma única organização, a polícia pública e estatal, a atividade de policiamento é realizada por uma vasta gama de organizações e arranjos coletivos.

POLÍCIA E CIDADANIA

Dentre a miríade de formas histórico-sociais e culturais assumidas pela atividade de policiamento está a polícia pública e estatal, uma "criatura" nascida há pouco mais de duzentos anos atrás, na Europa Ocidental, e que, de lá para cá, cresceu e se multiplicou em outras partes do mundo. Naquele momento histórico, a força policial nasceu para substituir as forças militares que, segundo o modelo de defesa da soberania (Foucault, 2003), mantinham a ordem pública nas grandes cidades. Tal modelo não combinava bem com as novas práticas de governo - fundadas na disciplina e na normatização, e na consequente normalização das condutas dos novos sujeitos sob domesticação, constituídos como indivíduos e cidadãos, isto é, como atores políticos e morais autônomos. Estamos falando aqui da redefinição de um tipo de governo, de ambição democrática e liberal, e da construção da polícia, como um corpo especial de funcionários - uniformizados e armados ou não -, para fazer o trabalho de manutenção da ordem entre e por sobre os corpos e territórios. Trata-se da fabricação de dispositivos coercitivos imediatos e, ao mesmo tempo, indiretos, cujo objetivo era o de comunicar a substituição da violência deliberada e a administração de sua escassez por meios legítimos de força, em nome da emergência de uma forma de governar capaz de conduzir de perto e à distância (governance at a distance) as comunidades nacionais. Tamanha mudança nos processos de governo e de estabilização do exercício de poder tem implicações fundamentais no tocante aos modos, aos meios e aos fins relacionados à produção de obediências, agora sob algum consentimento, e suas estratégias de legitimação. Em contraste com a doutrina da força máxima que norteia as forças armadas, a polícia pauta sua atuação pelo princípio da força mínima, visando a sustentar um determinado pacto político, assentado sob direitos e garantias, que se deseja construído com ou sob a autorização de indivíduos ou grupos policiados (Brodeur, 2004). Dito de outra maneira, busca-se garantir uma forma estatal e estável de governo, afirmando e restituindo os limites sobre os usos e abusos de poder entre os indivíduos e deles com o próprio Estado e seus agentes, sob o império da lei. Contudo, em muitas sociedades contemporâneas - sobretudo as pós-coloniais, com escassa tradição democrática ou profundas clivagens sociais e étnicas -, as organizações policiais seguem abertas às dinâmicas pré-modernas ou tradicionais de proteção, reproduzindo práticas desiguais, discriminatórias e excludentes sobre uma parcela da população colocada à mar-gem, ou situada na periferia do pacto social.4 Nesse cenário de desigualdade em direitos, as flutuações do crime e a percepção generalizada de insegurança, assim como os seus impactos sobre a opinião pública, reforçam a aprovação coletiva de práticas heterodoxas de policiamento público e estatal, nas quais se incluem toda sorte de violações e violências socialmente autorizadas. Diante desta perspectiva, a reflexão sobre a polícia não pode desconsiderar as diversas faces assumidas por essa complexa organização em suas expressões de governo: um dispositivo de dominação (de classe, raça, gênero e geração), uma instância produtora e distribuidora de moral e "moralismo" conflitantes, um instrumento de sustentação de direitos a serviço de uma cidadania mais ou menos inclusiva e em processo continuado de afirmação, e um meio de força orientado por fins coletivos e atravessado por seus interesses corporativos. Pode-se afirmar, então, que a relação da polícia com a cidadania é de complementaridade, que se evidencia em um jogo de negociação de verdades, de afirmação e negação, de legitimação e deslegitimação diante da ordem político-social ambicionada ou do escopo do pacto construído, se para alguns ou para todos. A relação da polícia com a cidadania revela, assim, uma tensão criadora e criativa que põe em relevo os modos concretos do governar e seus efeitos em uma dimensão mais sensível e crítica: o exercício autorizado do poder coercitivo ali "nas esquinas", entre nós, que explicita, questiona e redefine os limites e os sentidos do fazer policial pela afirmação de direitos constituídos ou na emergência de direitos difusos e novos direitos. Nessa linha, o fiel da balança depende sempre e mais do que de outras variáveis - a exemplo do nível de escolaridade e do treinamento dos policiais - da orientação governamental, no sentido de limitar ou não o potencial das forças policiais para "invadirem a cerca" ou solaparem os princípios democráticos, bem como da consciência (Cheviny, 1995) e do grau de universalidade dos direitos de cidadania nas sociedades (Ivo, 2008).
Leia o texto completo aqui.

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