sábado, 6 de fevereiro de 2010

Guerra com pimenta, em Pernambuco

Leia abaixo matéria publicada no jornal O GLOBO. Vale a pena conferir. É um interessante resgate histórico...

Guerra das pimentas das mulheres de Pernambuco
Historiadores resgatam episódio em que mulheres pernambucanas derrotaram holandeses com armas domésticas
Letícia Lins RECIFE – O GLOBO

Um episódio praticamente desconhecido da História do país, pouco lembrado nos livros didáticos e quase ignorado pelos historiadores, começa a ser descoberto e discutido.

Trata-se da Batalha de Tejucupapo, o primeiro registro de um grupo de mulheres brasileiras a participar de um conflito armado.

O fato aconteceu em abril de 1646, no Monte das Trincheiras, na antiga vila de São Lourenço de Tejucupapo, hoje um pequeno distrito do município de Goiana, localizado a 60 quilômetros de Recife.

Usando as armas que dispunham — como pedaços de pau e até água com pimenta — elas derrotaram invasores holandeses que, famintos, pretendiam roubar-lhes mandioca e farinha.

A batalha — retratada no espetáculo “Guerreiras”, que acaba de percorrer fortalezas datadas do século XVII em Recife — ainda hoje incendeia a imaginação dos pernambucanos. Talvez pela omissão dos estudiosos ou devido ao fato de suas heroínas terem permanecido no anonimato.

— É uma história fascinante, da qual nunca ouvi falar no colégio, nem na universidade.

Mas lembro que minha avó sempre fazia comentários sobre essa resistência — afirma Luciana Lyra, que faz doutorado no Instituto de Arte da Unicamp.

Luciana é coordenadora da turnê da Companhia Duas de Criação, responsável pela encenação de “Guerreiras”.

Ela também estuda a influência da batalha no cotidiano atual das mulheres de Tejucupapo e lamenta que o conflito seja pouco lembrado na história oficial, normalmente muito bem documentada, quando se trata da ocupação holandesa no Nordeste brasileiro.

— A Batalha de Tejucupapo foi um efeito colateral de uma ação específica, que é a Insurreição Pernambucana de 1645— afirma Marcos Galindo, professor da Universidade Federal de Pernambuco.

Galindo é autor de vários livros sobre a época e foi convocado para fazer uma conferência sobre o tema, durante o circuito das apresentações da peça.

A Insurreição foi um movimento de rebeldia contra a Companhia das Índias Ocidentais, que cobrava taxas exorbitantes dos produtores de açúcar, que comandaram uma rebelião contra a empresa, impedindo que ela atuasse em Pernambuco.

O príncipe Maurício de Nassau — com o qual as classes dominantes viveram tempos de boa paz — já tinha retornado à Holanda. Em 1645, a Insurreição estourou, tendo entre os seus líderes mais famosos Vidal de Negreiros, Henrique Dias e Filipe Camarão. Galindo lembra que os insurgentes impediam a chegada de abastecimento por navios e bloqueavam as vias terrestres com emboscadas.

Os holandeses que ficaram em Pernambuco para guerrear foram, aos poucos, entrando em fase de sérias privações. E passaram a invadir as áreas produtoras, em busca de comida. Tejucupapo foi uma delas.

Como lembra Diogo Lopes de Santiago em “História da Guerra de Pernambuco”, os holandeses que estavam na Ilha de Itamaracá, padecendo de fome, “determinaram fazer uma saída fora da ilha e dar na povoação de São Lourenço de Tejucupapo”, onde havia “roçarias de mandioca em muita quantidade e muitos legumes e frutas”. De acordo com o autor, 17 “lanchas” teriam sido usadas na empreitada “ora à vela, ora a remo”.

Quando os holandeses chegaram ao vilarejo, havia poucos homens — boa parte deles tinha deixado a área para guerrear. Mesmo assim, os que restaram se organizaram em uma paliçada, no interior da qual ficaram escondidas as mulheres e as crianças.

Os holandeses atacaram os improvisados soldados e se julgaram vitoriosos.

Mas ao entrar no reduto, se defrontaram com as mulheres. Elas tinham foices, enxadas, pedaços de pau, estrovengas (instrumento cortante usado na roça), fuzis e chuços.

Segundo Diogo Lopes de Santiago, as mulheres reprimiram o inimigo “com grande valor e ânimo, deixando o natural temor das mulheres”.

Nos olhos dos holandeses

Há relatos posteriores de que elas teriam lançado mão até da pimenta, atirando-a nos olhos dos holandeses. Como relata um promotor de Goiana, Otávio Pinto, em um livro de meados do século passado, com base nos relatos orais que ouviu dos antepassados, as mulheres de Tejucupapo, “esmagavam pimenta malagueta com água e a jogavam nos olhos dos holandeses, quando esses punham a cabeça na brecha do tapume”.

De acordo com Pinto, no livro “Velhas histórias de Goiana”, “a escritora Inês Mariz declarou que sua avó lhe contara ter visto certa vez uma gravura antiga de onde os holandeses apareciam tapando o rosto com as mãos, ao redor de um curral de pau a pique”.

De acordo com Galindo, 70 holandeses teriam morrido na batalha, mas não há dados sobre as baixas brasileiras. Ele lembra, no entanto, que essas baixas, embora tenham representado uma vitória para Tejucupapo, não foram um número significativo na tropa como um todo, já que os holandeses tinham um contingente de 3 mil homens na região.

— As mortes não afetaram numericamente a tropa flamenga, que não chegou a baixar o moral. A batalha é tratada pelos holandeses como uma escaramuça, uma coisa normal, cotidiana. Do ponto de vista histórico, sua importância realmente não é grande, tanto assim que grandes autores, como José Antônio Gonçalves de Melo, Evaldo Cabral de Mello e o Visconde de Porto Seguro (Van Hagen) tratam do assunto episodicamente.

Para as mulheres de Pernambuco, no entanto, será sempre motivo de orgulho

Resistência valorizada

Batalha reforçou o orgulho nacional

A Batalha de Tejucupapo tem, sim, muita importância histórica, garante a ex-presidente do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco, Luzilá Gonçalves, pesquisadora incansável da temática feminina e autora de diversos livros sobre mulheres que, a seu jeito, fizeram história.

— Durante muito tempo a batalha foi quase ignorada pelos historiadores. Fala-se que foi um fato menor, no contexto geral da guerra contra os holandeses.

Mas todo indício de resistência é importante numa guerra — afirma. — A história não se faz apenas nos campos de batalha e em lances decisivos.

Segundo a pesquisadora, como não estavam envolvidos no episódio nomes importantes da resistência aos holandeses e como foi, em grande parte, realizado por mulheres, nenhum nome ficou para as gerações futuras.

— No entanto, a tradição oral nos ajuda a manter vivo esse episódio e conta como elas ajudaram a construir o reduto que abrigou as famílias, prepararam a pólvora para as carabinas, carregaram mantimentos, armazenaram milho, feijão, farinha — conta.

Ela lembra que, em 1853, Antônio Joaquim de Mello referiuse “às senhoras de Tejucupapo” como de “espantosa coragem” e “coadjuvação entre armas e fogo”.

Marcos Galindo insiste, no entanto, que o episódio não teve tanto peso histórico e que foi esquecido justamente por não ter sido fundamental no desfecho da guerra contra os holandeses.

Lembra que autores como Diogo Lopes e Manuel Calado lhe dedicaram espaço porque os livros que escreveram eram de propaganda e não de história, que tinham por finalidade contar vitórias dos portugueses contra os holandeses.

Mas reconhece que o movimento não foi em vão.

— Se, historicamente, a batalha não teve relevância, socialmente foi importante para a construção de uma nova história, essa da identidade do povo, da construção de uma nação, a nação pernambucana.

Historicamente, está justificada, pelo uso social dela no século XIX, na criação dessa identidade nacional.

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