Mais um artigo sobre os trinta anos do PT. Também foi publicado pelo jornal VALOR ECONÔMICO.
Era uma vez um partido
Cláudia Izique
O Partido dos Trabalhadores chega aos 30 anos com uma história que não se pode qualificar como de perfeita homogeneidade, nem programática, nem ideológica, nem de prática política. O que se vê é um percurso acidentado, marcado por dissensões e revisões de rumo que talvez, numa visão otimista, possam ser creditadas a um processo, natural em partidos políticos e outros ajuntamentos humanos, que faz do conflito um caminho para a integração e o fortalecimento.
Não é o que pensa o sociólogo Francisco Weffort. O fato de a candidata do partido, Dilma
Rousseff, ser escolha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e não refletir um consenso partidário inspira a análise pessimista de Weffort, que deixou o PT em 1987, candidato derrotado a deputado constituinte. "O PT está engolindo Dilma por não ter alternativas" e a eventual vitória da ministra-chefe da Casa Civil, avalia Weffort, deverá empurrar o partido para importante perda de substância. "O Lula é uma espécie de reserva de contingência das convicções que deram origem ao partido. Se ela se eleger, haverá um esvaziamento dessas convicções. Haverá um esvaziamento ideológico e programático ainda maior."
Cândido Vacarezza, líder do governo na Câmara, discorda: "O que fundamenta o PT é sua unidade política. A Dilma tem mais identidade com o nosso projeto do que outras pessoas que participaram da fundação do PT. Ela representa a materialização do projeto do partido para o futuro."
O que não se discute é a relevância do PT na vida política do país desde a fundação, em 10 de fevereiro de 1980, três meses depois da Lei da Anistia e da aprovação pelo Congresso da reforma partidária que restabeleceu o pluripartidarismo. No ocaso da ditadura, surgiu como um partido novo, diferente das agremiações tradicionais, que se organizavam em torno de elites políticas vinculadas ao Estado.
Gestado no movimento sindical, o PT juntou facções significativas da Igreja Católica e boa parte da esquerda revolucionária, além de pós-materialistas, como Claudio Couto, do departamento de gestão pública da Fundação Getúlio Vargas, qualifica lideranças comprometidas com temas ambientais, feministas, de minorias, entre outros. Ocupou um "lugar de mercado" que, em tese, ele sublinha, poderia ter sido do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que, na ilegalidade e fragmentado por lutas internas, não conseguiu se reorganizar depois da anistia.
Essa composição heterogênea tinha um denominador comum na luta pela redemocratização do país e uma perspectiva de transformação do capitalismo, traduzida em vagas menções ao socialismo.
A heterogeneidade guardava ingredientes contraditórios. "Os segmentos representados pela Igreja se pautavam por argumentos populistas, enquanto os sindicalistas tinham uma perspectiva fortemente liberal e até neoliberal, já que seu interesse era o de obter ganhos na relação capital e trabalho e defender a livre negociação, sem interferência do Ministério do Trabalho", diz o cientista político Milton Lahuerta, da Universidade Estadual Paulista (Unesp). As contradições nas matrizes fundadoras impediam que o partido explicitasse claramente perspectivas de futuro. "Isso ajuda a entender porque o PT buscou afirmar e reafirmar sua superioridade ética em relação aos demais partidos", acrescenta Lahuerta. O PT ingressa na cena política avesso a alianças e sem forjar em sua base uma cultura política que aceitasse a ideia de compor com forças consideradas "conservadoras".
Essa indisposição começou a mudar em 1982, quando o PT optou por entrar no jogo eleitoral, conquistando algumas prefeituras e algumas vagas no parlamento, aliando-se, preferencialmente, a partidos do chamado "campo da esquerda". "O PT abriu-se para coligações e passou a compartilhar palanques", analisa Rachel Meneghello, da Universidade de Campinas (ver artigo na página 7).
O ingresso no jogo democrático teve um preço, do ponto de vista da organização interna. "No sistema eleitoral brasileiro, a competição é mais intrapartidária do que intepartidária. E isso, no PT, era mais agudo", diz Weffort. "Ingressei num partido solidário com os interesses dos trabalhadores e com a ideologia socialista. Aí veio a Constituinte e a queda do Muro de Berlim, em 1989, e esses ideais, ao meu ver, foram sendo pulverizados."
Ao longo dos primeiros anos, o partido teve características de movimento e foi pouco propositivo. Quando chegou ao governo, as duas lógicas - a de partido e de movimento social - se chocaram. "A tensão está na raiz dos conflitos da administração petista em Diadema, Santos, São Paulo e Fortaleza", exemplifica Weffort. "Muitas vezes, o partido foi o principal opositor dos governos petistas."
Nas eleições presidenciais de 1989, "a cúpula" da matriz sindical e as lideranças da esquerda revolucionária abrigadas no PT constituíram um bloco de forças, representado pelo "campo majoritário", e imprimiram ao partido uma "migração para o centro", analisa Lahuerta. "O José Dirceu queria uma aliança com o PMDB. Não deu certo porque a cultura política do partido não admitia."
As eleições de 1989 revelaram que o discurso de redemocratização, com viés socialista, não repercutira no eleitorado, sobretudo nas camadas mais pobres. A candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva foi derrotada pelos "setores menos esclarecidos e mais desfavorecidos da sociedade", reconheceu em entrevista o próprio Lula. "Temos que ir para a periferia, onde estão milhões de pessoas que se deixam seduzir pela promessa fácil de casa e comida."
André Singer, professor do departamento de ciência política da USP, ex-porta voz do primeiro governo Lula, entende a rejeição dos "setores menos esclarecidos" como uma manifestação de resistência a opções que colocassem a ordem em risco. A esquerda era preterida em favor de "uma solução pelo alto" - escreveu Singer no texto "Raízes Sociais e Ideológicas do Lulismo", publicado na revista "Novos Estudos", do Cebrap, invocando antecedentes "clássicos", descritos por Marx em "O 18 Brumário de Luís Bonaparte".
Apesar de ganhar institucionalidade nos Estados e municípios, em nível nacional o PT era visto como um partido de oposição a "tudo que existisse". "O eleitor percebia que o discurso socialista era de mentirinha", avalia Couto.
Em 1994 e em 1998, o "conservadorismo popular", acionado pela inflação e pelo medo da instabilidade, venceu Lula outra vez. Mas foi suficiente para aprofundar as mudanças no PT. "As derrotas de 1989, 1994 e 1998 foram o fundamento para o partido reconhecer que a política de alianças deveria se aprofundar e ir além do campo da esquerda, colando-se a um projeto mais amplo", analisa Rachel.
Nas eleições de 2002, o PT entrou na disputa com um perfil moderado. "Na 'Carta aos Brasileiros', o partido assumiu um discurso verdadeiro. Comprometeu-se com o controle de gastos, com o pagamento da dívida, com uma política fiscal austera e com metas de inflação", avalia Couto.
Havia, ainda, o êxito de dois governos do PSDB. "O partido reconheceu que as chances dependiam de que se abrisse para uma proposta mais próxima da social-democracia, aliando-se ao capital nacional", afirma Rachel.
Essa estratégia de alianças foi concebida pelo núcleo "pragmático" do PT, coordenado por José Dirceu e por Lula, lembra Lahuerta. "O PT não tinha como governar sem reproduzir o modelo do PSDB, de alianças mais conservadoras, e acabou por fazer acordo com partidos menores." Na campanha, sua principal base de apoio foram os eleitores de níveis superiores de escolarização nos Estados mais urbanizados e industrializados do Sul e do Sudeste, recorda Singer.
A estratégia de alianças com partidos "menores" desembocou no "mensalão" e na "crise moralista dos intelectuais do partido", diz Lahuerta. Em 2005, o PT só não se desmantelou por causa do carisma de Lula e da força de sua organização. "Depois da crise do 'mensalão'", observa Rachel, "o PT tinha 800 mil filiados, o que pode parecer pouco em relação ao tamanho do eleitorado mas, do ponto de vista da construção institucional, tem peso semelhante ao do trabalhismo na Inglaterra.
O "mensalão" fragilizou o PT diante da opinião pública e sua já comprometida unidade interna. E ainda custou a exclusão da cena política de lideranças parlamentares, como Antonio Palocci e José Dirceu. "Ao longo do segundo governo Lula, o partido não construiu lideranças nacionais", acrescenta Rachel.
Pesquisas da Fundação Perseu Abramo com delegados do PT mostram claramente a divisão que começa a ocorrer a partir de 2005, conta Rachel. "Não há consenso sobre determinações da cúpula, mas também não há uma recusa frontal."
Em 2006, Lula se reelegeu pelos feitos do governo e programas como Bolsa Família, políticas de controle de preços, aumento real do mínimo, crédito consignado. "Lula foi a grande contribuição do PT ao país", diz o senador Aloizio Mercadante. "O mundo reconhece hoje o Brasil como uma nação emergente e isso tem a ver com Lula e com os governos anteriores."
As ações governamentais do primeiro mandato aumentaram "a capacidade de consumo de milhões de pessoas de baixíssima renda", como atesta o acesso em grande escala à classe C, num contexto de manutenção da estabilidade com expansão do mercado interno, sobretudo para setores de baixa renda, diz Singer. Em 2006, ele aponta, o voto em Lula sofre uma mudança ideológica: aumenta em direção aos extremos, tanto à esquerda como à direita, e cai no centro. "Lula passa a representar uma opção nova, que mistura elementos de esquerda e de direita, contra uma alternativa de classe média organizada em torno de uma formulação de centro."
Lula começa, assim, a autonomizar sua ligação com o partido. "Ele fica maior que o PT e acima das contradições do PT, uma espécie de mito . Não é mais um representante de um setor social. Transforma-se numa espécie de mediador, acima das classes, falando tanto ao MST como aos usineiros", analisa Lahuerta. Surge o "lulismo".
"A desconexão entre as bases do lulismo e as do petismo em 2006 pode significar que entrou em cena uma força nova, constituída por Lula à frente de uma fração de classe caudatária dos partidos da ordem e que, mais do que um efeito geral de desideologização e despolitização, indicava a emergência de outra orientação ideológica, que antes não estava posta no tabuleiro", escreveu Singer.
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário