Leia abaixo uma análise muito lúcida, escrita por colunista do jornal Valor Econômico.
Voto decisivo contra Battisti ficou às claras
Maria Inês Nassif
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em relação ao pedido de extradição do ex-militante da esquerda armada Cesare Battisti, feito pelo governo italiano, marca o auge de uma escalada “autonomista” do tribunal, entendida não como exercício de autonomia na decisão judiciária em relação a pressões externas contra liberdades individuais e coletivas, mas como o exercício de um poder de Justiça que se sobrepõe aos demais poderes constituídos. O voto do ministro Marco Aurélio Mello, que na semana passada empatou a votação do plenário – desempatada ontem, contra Battisti, pelo voto do presidente do tribunal, Gilmar Mendes -, é um alerta sobre essa escalada. Para Mello, a invasão do STF à seara do governo federal, em uma decisão sobre política externa, remete “à pior ditadura, a do Judiciário”, porque é uma ação inconstitucional praticada pelo tribunal cuja maior prerrogativa constitucional é a de zelar pela Carta Magna.
Mello foi definitivo: “Compete privativamente [ao presidente da República] manter relações com Estados e seus representantes diplomáticos, celebrar tratados internacionais”; “o Supremo não há de substituir-se ao Executivo, adentrando seara que não lhe está reservada constitucionalmente e (…) simplesmente menosprezando a quadra vivenciada à época na Itália e retratada com todas as letras na decisão proferida”, continuou.
O voto do ministro Marco Aurélio Mello foi importante não apenas porque ele nadou contra uma corrente muito forte de opinião pública, mas porque despiu o julgamento do conteúdo excessivamente politizado, no mau sentido, a que foi submetido. O movimento para que o governo brasileiro entregue Battisti ao governo italiano veio repleto de dogmas. O processo de extradição foi empacotado por máximas sobre as quais não se admitiu questionamento – e que, tomadas em separado, mostram o seu inegável caráter ideológico. Abaixo, algumas delas:
1) O governo brasileiro é destituído de qualquer discernimento jurídico que lhe permita decidir contra o saber jurídico italiano, que condenou o ex-militante à prisão perpétua;
2) O Judiciário brasileiro, depositário do monopólio do saber jurídico nacional, não pode se opor ao governo italiano porque isso seria se negar como depositário desse saber;
3) um poder que tem o monopólio do conhecimento jurídico não apenas tem legitimidade, mas deve se precaver contra ações desatinadas de um Poder Executivo escolhido pelo voto – e o voto, que emerge igualmente de letrados e iletrados, não raro precisa de correção;
4) jamais um ministro da Justiça do governo Lula, sem pedigree jurídico (que o ministro Márcio Thomaz Bastos, por exemplo, tinha), mas cuja carreira é política, poderia se contrapor a um movimento ilustradamente jurídico – Tarso Genro fez isso e, além de não ter pedigree, ele veio maculado por uma militância na esquerda radical nos nossos anos de chumbo;
5) Battisti não andou na seara dos confrontos políticos – e tirar os supostos (sim, supostos, pois o italiano alega inocência e um julgador não pode simplesmente desprezar isso) crimes do âmbito político é fundamental para deslegitimar o asilo político concedido pelo governo brasileiro e também para “despolitizar” os graves conflitos ocorridos na Itália dos anos 70, já conhecidos pela história como “anos de chumbo” deles.
Mello desconstruiu esses dogmas, a começar pelo mais importante deles na formulação dos argumentos políticos e jurídicos a favor da extradição, a de que Battisti não cometeu crimes políticos, e sim comuns. O ministro disse que a configuração do crime político era “escancarada” – e em favor de sua tese citou as próprias pressões do governo italiano para o governo brasileiro extraditar Battisti. “Assim procederiam, se na espécie não se tratasse de questão política? Seria ingenuidade acreditar no inverso do que surge repleto de obviedade maior”, disse o ministro. “Façam justiça ao ministro Tarso Genro, cujo domínio do direito todos conhecem”, continuou Mello, que ainda pediu ao plenário para reconhecer o “momento histórico” vivido pela Itália na época dos fatos e, mais do que isso, até a admitir que as acusações contra o ex-militante podem não ter fundamento. “As acusações não buscam esteio em provas periciais, fundamentando-se em uma testemunha de acusação”, disse. Battisti foi condenado à prisão perpétua em seu país com base no instituto da delação premiada, e foi acusado pelos três militantes do grupo político a que pertencia e que eram os apontados como responsáveis por esses crimes. Battisti já estava foragido.
O julgamento final do ex-militante italiano pelo STF estava em andamento no fechamento desta coluna. O ministro Gilmar Mendes proferiu o voto da forma como era esperado que fizesse: atendendo ao pedido do governo da Itália, pela extradição de Battisti. Conforme também era esperado, não aceitou a janela aberta no voto de Mello, para que transformasse em “autorizativa” a decisão de extradição. Mendes decidiu que o STF é competente inclusive para decidir a extradição do ex-militante italiano. Independente da decisão final do plenário do Supremo, a posição do ministro Marco Aurélio Mello teve o poder de destituir de um caráter pretensamente neutro o voto de desempate dado contra o asilado. As coisas pelo menos ficam mais claras dessa maneira.
Maria Inês Nassif é repórter especial de Política. Escreve às quintas-feiras
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