quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Uma análise do julgamento político de Battisti

Leia abaixo uma análise muito lúcida, escrita por colunista do jornal Valor Econômico.


Voto decisivo contra Battisti ficou às claras
Maria Inês Nassif


A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em relação ao pedido de extradição do ex-militante da esquerda armada Cesare Battisti, feito pelo governo italiano, marca o auge de uma escalada “autonomista” do tribunal, entendida não como exercício de autonomia na decisão judiciária em relação a pressões externas contra liberdades individuais e coletivas, mas como o exercício de um poder de Justiça que se sobrepõe aos demais poderes constituídos. O voto do ministro Marco Aurélio Mello, que na semana passada empatou a votação do plenário – desempatada ontem, contra Battisti, pelo voto do presidente do tribunal, Gilmar Mendes -, é um alerta sobre essa escalada. Para Mello, a invasão do STF à seara do governo federal, em uma decisão sobre política externa, remete “à pior ditadura, a do Judiciário”, porque é uma ação inconstitucional praticada pelo tribunal cuja maior prerrogativa constitucional é a de zelar pela Carta Magna.

Mello foi definitivo: “Compete privativamente [ao presidente da República] manter relações com Estados e seus representantes diplomáticos, celebrar tratados internacionais”; “o Supremo não há de substituir-se ao Executivo, adentrando seara que não lhe está reservada constitucionalmente e (…) simplesmente menosprezando a quadra vivenciada à época na Itália e retratada com todas as letras na decisão proferida”, continuou.

O voto do ministro Marco Aurélio Mello foi importante não apenas porque ele nadou contra uma corrente muito forte de opinião pública, mas porque despiu o julgamento do conteúdo excessivamente politizado, no mau sentido, a que foi submetido. O movimento para que o governo brasileiro entregue Battisti ao governo italiano veio repleto de dogmas. O processo de extradição foi empacotado por máximas sobre as quais não se admitiu questionamento – e que, tomadas em separado, mostram o seu inegável caráter ideológico. Abaixo, algumas delas:

1) O governo brasileiro é destituído de qualquer discernimento jurídico que lhe permita decidir contra o saber jurídico italiano, que condenou o ex-militante à prisão perpétua;

2) O Judiciário brasileiro, depositário do monopólio do saber jurídico nacional, não pode se opor ao governo italiano porque isso seria se negar como depositário desse saber;

3) um poder que tem o monopólio do conhecimento jurídico não apenas tem legitimidade, mas deve se precaver contra ações desatinadas de um Poder Executivo escolhido pelo voto – e o voto, que emerge igualmente de letrados e iletrados, não raro precisa de correção;

4) jamais um ministro da Justiça do governo Lula, sem pedigree jurídico (que o ministro Márcio Thomaz Bastos, por exemplo, tinha), mas cuja carreira é política, poderia se contrapor a um movimento ilustradamente jurídico – Tarso Genro fez isso e, além de não ter pedigree, ele veio maculado por uma militância na esquerda radical nos nossos anos de chumbo;

5) Battisti não andou na seara dos confrontos políticos – e tirar os supostos (sim, supostos, pois o italiano alega inocência e um julgador não pode simplesmente desprezar isso) crimes do âmbito político é fundamental para deslegitimar o asilo político concedido pelo governo brasileiro e também para “despolitizar” os graves conflitos ocorridos na Itália dos anos 70, já conhecidos pela história como “anos de chumbo” deles.

Mello desconstruiu esses dogmas, a começar pelo mais importante deles na formulação dos argumentos políticos e jurídicos a favor da extradição, a de que Battisti não cometeu crimes políticos, e sim comuns. O ministro disse que a configuração do crime político era “escancarada” – e em favor de sua tese citou as próprias pressões do governo italiano para o governo brasileiro extraditar Battisti. “Assim procederiam, se na espécie não se tratasse de questão política? Seria ingenuidade acreditar no inverso do que surge repleto de obviedade maior”, disse o ministro. “Façam justiça ao ministro Tarso Genro, cujo domínio do direito todos conhecem”, continuou Mello, que ainda pediu ao plenário para reconhecer o “momento histórico” vivido pela Itália na época dos fatos e, mais do que isso, até a admitir que as acusações contra o ex-militante podem não ter fundamento. “As acusações não buscam esteio em provas periciais, fundamentando-se em uma testemunha de acusação”, disse. Battisti foi condenado à prisão perpétua em seu país com base no instituto da delação premiada, e foi acusado pelos três militantes do grupo político a que pertencia e que eram os apontados como responsáveis por esses crimes. Battisti já estava foragido.

O julgamento final do ex-militante italiano pelo STF estava em andamento no fechamento desta coluna. O ministro Gilmar Mendes proferiu o voto da forma como era esperado que fizesse: atendendo ao pedido do governo da Itália, pela extradição de Battisti. Conforme também era esperado, não aceitou a janela aberta no voto de Mello, para que transformasse em “autorizativa” a decisão de extradição. Mendes decidiu que o STF é competente inclusive para decidir a extradição do ex-militante italiano. Independente da decisão final do plenário do Supremo, a posição do ministro Marco Aurélio Mello teve o poder de destituir de um caráter pretensamente neutro o voto de desempate dado contra o asilado. As coisas pelo menos ficam mais claras dessa maneira.

Maria Inês Nassif é repórter especial de Política. Escreve às quintas-feiras

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