Crise militar? Parece meio demodê, não é? Mas o assunto, ao que tudo indica, é grave. E tem todos os ingredientes para se constituir em um caldeirão político agora em janeiro. Logo em janeiro! Um mês tradicionalmente incolor do ponto de vista político. Pois é, os bivaques estão em polvorosa. E as vivandeiras, como dantes, em longínqua data, não se cansam de açular os quartéis. Aproveite e leia, abaixo, a análise sempre lúcida de Alon Feuerwerker sobre o imbroglio.
Uma "CPI" da ditadura (31/12)
Alon Feuerwerker
Desconfortável que a palavra “anistia”, resultado de belas e grandes lutas, vá sendo transformada em sinônimo de problema, esperteza, impunidade. Mas o fenômeno é com certeza passageiro.
É bom que o país tenha conhecimento da sua História. Mas isso deve ser visto à luz do interesse nacional. E quem define o interesse nacional? Costumam ser os poderes constituídos. Então, é natural que a busca da verdade histórica se submeta à lógica da luta política. Eis (mais) uma qualidade da alternância no poder: quando os diversos grupos se revezam no comando do Estado, ao fim de certo tempo haverá alguma democratização dos “podres” divulgados.
O governo federal acaba de tomar iniciativas para repor na agenda a revisão dos atos cometidos por autoridades, especialmente militares, ao longo da ditadura de 1964-1985, com o objetivo de lançar luz definitiva sobre aquele período e, eventualmente, responsabilizar por crimes. Essa segunda parte é inócua. Nenhuma legislação pode retroagir, e quem vai decidir se a Lei de Anistia e suas ampliações valeram ou não para os torturadores não são nem o presidente da República nem o Congresso Nacional: será o Supremo Tribunal Federal (STF).Por isso, é razoável concluir que o gesto presidencial, impulsionado pelas pastas dos Direitos Humanos e da Justiça, tenha também o objetivo de colocar pressão sobre o STF.
Mas não apenas: com a medida, o governo reabre uma frente de combate para enquadrar as Forças Armadas num figurino mais adequado aos atuais ocupantes do poder. Tentou isso na rebelião dos controladores de voo anos atrás, quando o Planalto operou para minar a autoridade da FAB. Deu errado, talvez por falta de apoio social à ideia de deixar o controle do espaço aéreo nacional nas mãos de um sindicato.Terá agora Lula força suficiente para empurrar as Forças Armadas contra o canto da parede? O presidente e o governo estão no ápice do poder, ou da sensação de poder. Afinal, se a guerra travada pelos que combatiam as organizações armadas foi em certas situações hedionda, tampouco a guerrilha de esquerda atuou como se colhesse rosas num jardim. Guerra bonita, só nos filmes. Mas o governo, aparentemente, julga que poderá passar a limpo apenas um lado da coisa, descascar apenas uma metade do abacaxi.
Os entes queridos dos mortos e desaparecidos na ditadura têm o direito inegável e inalienável de saber o que aconteceu. É um direito que em situação normal deveria ser buscado na Justiça. Mas o governo aparentemente considera que a situação não é normal, e que o assunto deve ser reaberto na esfera política, criando uma espécie de “CPI da ditadura”. Veremos no que vai dar.Mas uma vitória pelo menos o governo já colheu: cada vez que mexe no tema, a administração do PT coloca-se num planto moral supostamente acima. De um lado, os que desejam apurar os crimes contra os direitos humanos e punir os culpados; do outro, os que não querem, por mera conveniência política. Fácil de explicar, fácil de faturar.
As circunstâncias da Anistia conquistada no final dos anos 70 do século passado são conhecidas. Ela resultou de um amplo movimento democrático, que havia criado no país um ambiente político propício. Um ambiente que, entre outras coisas, permitiu a emergência do movimento sindical do ABC e de Lula. Boa parte dos grupos que confluiriam depois para o PT não apoiaram a Anistia, ainda que dela tenham se beneficiado. Assim como tampouco viriam a apoiar Tancredo Neves no colégio eleitoral. Assim como resistiriam depois a endossar a Constituição de 1988.O PT não parece se reconhecer como protagonista pleno da luta dos anos 70 e 80 pela redemocratização do país. Parece identificar-se melhor com as organizações que se levantaram em armas contra a ditadura nos anos 60, por projetos políticos que não necessariamente implicariam um desfecho como a Nova República, uma democracia representativa clássica.
É a política, e quem não tiver estômago que mude de ramo. Desconfortável, apenas, que a palavra “anistia”, resultado de belas e grandes lutas do povo brasileiro, vá sendo transformada em sinônimo de problema, de esperteza, de impunidade. Mas o fenômeno é passageiro. A ideologia –qualquer ideologia– é impotente para revogar os fatos. E todo poder que se considera absoluto um dia descobre que não é. Quando tem sorte, descobre a tempo.
Coluna (Nas entrelinhas) publicada nesta quinta-feira (31) no Correio Braziliense.
quinta-feira, 31 de dezembro de 2009
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