Transcrevo aí abaixo um relato pungente, escrito pela jornalista Eliane Brum, de encontros possíveis em qualquer grande cidade. Lembrei-me de um outro texto, também muito bom, escrito no início do século XX, por Georg Simmel. O título é "As grandes cidades e a vida do espírito". Foi traduzido para o português há umas três décadas. Está em uma coletânea organizada pelo antropólogo Gilberto Velho. Você pode encontrar uma tradução mais recente, publicada pela sempre ótima revista Mana. Clique aqui e leia-o. Mas, antes, acompanhe a narrativa abaixo. E tente, nesta manhã pós-céia de Natal, não se emocionar...
ESCOLHA O FINAL: Mesmo nas Histórias Reais, a Verdade Nunca é Simples
ELIANE BRUM
ebrum@edglobo.com.br
Da Revista Época
É curioso como acordamos com a ilusão de que sabemos o que vai acontecer. Numa manhã, dias atrás, eu tinha uma série de compromissos encadeados numa série que acabaria só tarde da noite. A parte leve do meu dia era um pit stop para fazer as unhas no salão aonde vou sábado sim, sábado não. Eu tinha acabado de superar o dilema feminino de escolher o esmalte, depois de oscilar entre cores e nomes que só os esmaltes são capazes de ter: Atrevida, Maçã, Paixão e Canoa. De repente, essa rotina segura foi rompida por um grito.
“A mulher está desmaiando”, gritou Elis, a moça que tinge, lava e seca os cabelos. Pela cortina, eu só vi as costas de uma mulher grande, sentada no banco diante da calçada, na Vila Madalena, em São Paulo. Ciça, a dona do salão, amparava o seu corpo. Tatiane, a recepcionista, correu a buscar um copo d’água. Rose, a manicure, arriscou um diagnóstico: “Pressão baixa”. Voltei a ler. A moça estava sendo cuidada. Eu tentava recuperar a palavra interrompida na página do jornal quando ela começou a falar.
O desespero na sua voz alcançou as cutículas da minha alma. Eu não entendia o que ela dizia, só escutava o desamparo. Pela cortina, via seus ombros sacudirem-se num choro convulso. Na porta, Tatiane narrava o que ouvia. Sua história vinha aos soluços, como no twitter. “O marido morreu”. “Ela saiu às 4h da manhã de casa”. “Foi despejada porque não tinha o dinheiro do aluguel”. “Deixou os filhos e suas coisas debaixo de uma árvore e veio procurar trabalho”. “O filho mais velho tem 12 anos e ficou chorando”. “Ela tem gêmeos de nove meses que amamenta”. “A vizinha ficou olhando os filhos”. “Ela está com fome”. “Ela está desesperada”.
No lado de dentro, nós éramos mulheres fazendo as unhas, tingindo e cortando os cabelos, num espaço do feminino distante do feminino dela. A dor da mulher entrava pela porta daquele santuário em que vivíamos nossas delicadezas no meio de uma cidade bruta. Cada uma com problemas que nos tentaculavam como polvos.
Algumas de nós cravaram os olhos em suas revistas de celebridades. Não porque fossem indiferentes ao drama, mas porque era dolorido demais entrar em contato. Tentavam se convencer de que aquilo não estava acontecendo. Se ficassem bem concentradas na polêmica sobre o vestido curto de Juliana Paes na cerimônia do Emmy, a voz terrível do lado de fora acabaria se calando. Uma delas nem percebeu que a revista estava de cabeça para baixo.
A certa altura, todas nós chorávamos. Uma mistura de compaixão e vergonha. Não por chorar, mas por não saber o que fazer. Éramos mulheres que davam duro para ganhar a vida e às vezes nos escondíamos ali para ficar bonitas. Fugíamos não só de nossas unhas roídas, mas da feiúra do mundo. E lá estava ela, à porta de nosso pequeno e frágil universo, chorando de fome e desespero. Cadê os seguranças, as cercas eletrificadas, o porteiro eletrônico, os vidros com insulfilm para nos proteger do desamparo alheio? Não havia.
Com braços espichados, pernas no colo da manicure, eu era um retrato patético da impotência. Depois de alguns minutos eternos consegui romper meu imobilismo. “Tati, quanto é o aluguel dela?”. Tati correu para fora. Voltou. “É cem reais.” A dona do salão ofereceu a ela um emprego em sua casa. Dei a ela o dinheiro do aluguel, para que pudesse reorganizar a vida e voltar a trabalhar.
A mulher quis entrar para me conhecer. O desamparo agora tinha corpo. Era negra, grande, os seios fartos de leite. O conjunto azul de saia e blusa revelava sua tentativa de estar apresentável para bater de porta em porta em busca de um emprego. Sempre me comovi com estes pequenos detalhes. O vestido puído, mas limpo, o paletó curto nas mangas, os sem-tetos que lavam as roupas nos parques para vesti-las embaixo de viadutos imundos.
Nos abraçamos ali, entre escovas, esmaltes e secadores de cabelo. Descobri que eu precisava tanto daquele abraço quanto ela. Duas estranhas abraçadas, cada uma com o nariz enfiado no pescoço da outra, misturando o sal das nossas lágrimas e do nosso suor. Duas mulheres em posições sociais diferentes, mas que se reconheciam no desamparo. Sem cercas para nos apartar, nos enxergávamos.
Quando percebi, eu dizia coisas para ela como: “A vida às vezes é bem dura, mas passa”. Ou: “Come antes de pegar o ônibus para não desmaiar”. Ou ainda: “Paga o aluguel, cuida dos teus filhos e depois volta”. Soube então que seu nome era Eliane. Éramos duas Elianes chorando abraçadas pela dor de ser mulher num mundo tão assustador.
Não era esmola o que dei ali. Nem era esmola o que ela aceitou. Era algo que nos igualava, que permitia que nos abraçássemos e chorássemos juntas. Ela achava que Deus tinha guiado os seus passos. “Eu ia por uma rua, mas Deus me mandou ir por outra”, disse ela. Já eu acredito mais nos pequenos milagres humanos. E acredito que eles acontecem quando vencemos nosso medo e nos reconhecemos nos olhos do outro. Toda violência, acho eu, começa quando deixamos de nos enxergar, erguendo – também literalmente – muros entre nós. Apartados uns dos outros, é óbvio que quando nos encontramos não há reconhecimento, só desconfiança.
Não foi por acaso que ela desabou naquela porta. O salão tem porta para a calçada e um banco onde é possível sentar. Sua arquitetura acolhe, não afasta. Deve ter sido o único banco que Eliane encontrou nos muitos quarteirões por onde andou arrastando a sua dor. Naquele mundo de mulheres ela chegou como estrangeira. Mas suas palavras foram ecoando em cada uma de nós, até que ultrapassaram a soleira da porta junto com ela. Ela então se tornou uma de nós, mulheres tentando desenredar a vida.
Salões de beleza, seja nos bairros nobres ou nas favelas, são universos onde os dramas do mundo feminino se desenrolam. Há uma força poderosa nesse desejo de se embelezar. Somos todas muito parecidas com os pés nus estendidos no colo de outra mulher. Essa trama delicada é tema de um filme bonito que está nas locadoras chamado Caramelo (Nadine Labaki, 2007).
Nele, as vidas de cinco mulheres se entrelaçam num salão de beleza de Beirute, no Líbano. Layale, amante de um homem casado, sonha com o dia em que ele vai se separar para ficar com ela; Nisrine está de casamento marcado, mas não é mais virgem e não sabe como contar isso ao noivo muçulmano; Rima sente atração por mulheres; Jamale tem medo de envelhecer; e Rose cuida da irmã mais velha.
Me senti num filme real naquele final de manhã. Um filme só de mulheres. Quando a outra Eliane partiu, ficamos fungando em silêncio. E Rose terminou de pintar minhas unhas com esmalte Maçã.
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Eliane deveria voltar na terça-feira seguinte para começar a trabalhar na casa da dona do salão. Nunca apareceu.
O que teria acontecido? O final desta história não é simples.
A terça-feira em que ela deveria voltar, 8 de dezembro, foi o dia em que São Paulo parou por causa da chuva. Eliane disse que morava nos confins da Zona Leste. Teria ela sido acossada pela chuva? Ou alguma de suas crianças? Como acontece a cada ano, dezenas morrem de algo tão previsível quanto a chuva no estado mais rico do país. Só naquela terça-feira morreram pelo menos seis na Grande São Paulo. E centenas ficaram desabrigadas.
Fico de olho nas notícias sobre os mortos, mas até agora não encontrei ninguém com suas características. Ela pode estar ferida, o barraco pode ter desabado, um filho pode ter ficado doente. Ela não deixou nenhum endereço. Ficou apenas de voltar com certeza.
Ou seria um golpe? Aceitando essa hipótese plausível, teríamos nós, escoladas moradores da metrópole, caído numa velha pantomina. A favor de nós, para que nos sintamos um pouco menos idiotas, pode-se dizer que ela era uma grande atriz. Sim, porque estava gelada, suava frio, tremia muito e chorava lágrimas copiosas.
Há outras possibilidades. De que ela estivesse mesmo desesperada e com fome, mas precisou contar uma história mais trágica para nos sensibilizar. Ou ainda, que estivesse em síndrome de abstinência de algum tipo de droga, o que explicaria o quase desmaio, os tremores e o suor frio. Mas ninguém lhe daria dinheiro para comprar crack, por exemplo, se falasse a verdade. Neste caso, o desespero seria real, o motivo mentira.
A verdade nunca é fácil nem está toda no mesmo lugar.
Quando fazemos reportagens, precisamos duvidar de tudo. Vamos a todos os lugares, falamos com todos os envolvidos, checamos os documentos, ouvimos o contraditório e relatamos o que encontramos, para que os leitores possam chegar a suas próprias conclusões. Mas, na vida cotidiana, não temos esse tempo. As escolhas, em geral, precisam ser rápidas. Estender ou não a mão a alguém que pede ajuda?
Não há certezas. E, na dúvida, qual é o final que prefiro para esta história?
Por um lado, gostaria de não ter caído num golpe. Ninguém gosta de se sentir idiota. Por outro, se não era um golpe, ela pode estar morta ou ferida o suficiente para não poder ligar pedindo ajuda. Isso seria bem pior, obviamente. Por paradoxal que seja, o melhor é ter sido vítima de um golpe e feito um papel ridículo.
Possivelmente nunca saberei a verdade dela. Mas é importante conhecer a minha verdade. A pergunta que importa agora é: o que eu faria se algo assim acontecesse novamente?
Eu faria o mesmo.
Pertenço à parcela das pessoas que prefere deixar a porta aberta a se trancar atrás dela. Sempre há um risco de entrar um golpista pela porta, mas por ela também entra quem precisa de um colo, entra o novo e até o extraordinário. É uma convicção profunda que me move pela vida. E espero sempre ser capaz de escolher este final para a minha história.
sexta-feira, 25 de dezembro de 2009
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