quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Repertórios de justiça na periferia

O texto abaixo é de autoria de Gabriel Feltran, Professor da UFSCAR e pesquisador do Cebrap. Aborda questões centrais para todos quantos se interessam pelas temáticas da criminalidade e da violência. Confira!

Crime e castigo na cidade: os repertórios da justiça e a questão do homicídio nas periferias de São Paulo
Gabriel de Santis Feltran


Os moradores das periferias de São Paulo, quando enfrentam situações consideradas injustas no seu dia a dia, podem recorrer a diferentes instâncias de autoridade em busca de justiça. A escolha da instância a acionar depende do tipo de problema enfrentado. Por exemplo, se um homem tem um emprego e durante anos não recebeu as horas extras a que tinha direito, recorrerá à justiça do trabalho. Se uma mãe não recebe a pensão alimentícia do ex-marido, acionará a justiça civil. Se ela teve um filho preso injustamente, ou se ele sofreu violência policial na favela em que vive, tentará recorrer à imprensa e, se não der certo, a entidades de defesa de direitos. No limite, restará sempre o recurso à "justiça divina". Mas, se alguém da família foi roubado, agredido, coagido ou morto (e os agentes da ação criminosa não foram policiais), será feita uma queixa a uma autoridade local do "mundo do crime". Caso seja preciso, e por intermédio de "irmãos" (membros batizados do Primeiro Comando da Capital PCC), será organizado um "debate" para arbitrar a contenda e executar medidas que façam justiça.

Assim, para além do Estado e da justiça legal, um morador das periferias de São Paulo tende hoje a identificar como instâncias de autoridade capazes de fazer justiça: (i) integrantes do "crime" e, sobretudo, do PCC, progressivamente legitimados como zeladores da "lei" (também chamada de "ética", ou "proceder"), amparada em costumes que regem a conduta dos "bandidos" onde quer que eles morem, ou por habitantes das favelas nas quais eles são considerados como autoridades; (ii) os meios de comunicação de massa, particularmente a televisão (desde os programas populares e policiais até os telejornais, nos quais se pode publicizar os dramas e injustiças vividos e, a partir daí, tentar obter alguma reparação); e, finalmente, pairando sobre todas elas, (iii) a autoridade divina, força suprema que ofertaria a redenção aos injustiçados após a vida, para os católicos, e a prosperidade ainda sobre a terra, para os neopentecostais. Entre os últimos, em franco crescimento nos territórios estudados, a conversão pode promover reações mundanas nada desprezíveis (Almeida, 2004, 2009).

A existência desse repertório de instâncias garantidoras de justiça, ao contrário do que se poderia supor, não é lida por esses sujeitos como uma negação da relevância do Estado de direito, ou da legalidade oficial. Os moradores das periferias são talvez o grupo social mais interessado em utilizar a lei oficial para fazer garantir seus direitos formais, sempre ameaçados. A busca repertoriada da justiça, nesse contexto, é muito mais uma decisão instrumental, amparada na experiência cotidiana, do que um princípio normativo idealizado. Como é muito difícil por vezes impossível obter usufruto concreto da totalidade dos direitos pelo recurso às instâncias legais e à justiça do Estado, apela-se a outras instâncias ordenadoras que passam a ser percebidas, então, como complementares àquelas estatais que funcionam.
Este artigo não trata, evidentemente, de todo esse repertório de instâncias de autoridade e justiça, nem dos respectivos ordenamentos sociais que elas fazem coexistir nas periferias de São Paulo. Não examino nem o recurso aos meios de comunicação, nem às igrejas, nem me debruço sobre o senso de justiça das entidades civis de defesa de direitos sociais ou humanos. Concentro-me aqui, unicamente, na descrição e análise das normas de conduta e dispositivos de arbítrio acerca do descumprimento dessas normas, que construíram a legitimidade e a autoridade que os "debates" das facções criminosas (particularmente o PCC) gozam hoje nas periferias da cidade.

Estudar esse dispositivo me parece relevante por duas razões associadas: em primeiro lugar, trata-se de um tema apenas recentemente discutido na literatura acadêmica e no debate público (Marques, 2007, 2008; Biondi, 2009; Hirata, 2009), embora crescentemente comentado em pesquisa de campo e intimamente relacionado com a discussão pública sobre a diminuição das taxas de homicídio em São Paulo (Lima, 2009). Em segundo lugar, porque a lógica interna que rege o dispositivo é radicalmente distinta da lógica do direito democrático e, ainda assim, verifica-se que ela se tornou mais operativa nas periferias da cidade, justamente nas últimas décadas, período de construção formal de uma justiça estatal democrática no país. Esse último paradoxo me interessa especialmente, por se inscrever na questão de fundo que move minha investigação nas periferias de São Paulo há mais de dez anos, e que poderia ser resumida na tentativa de descrever as formas de aparição dessas periferias nos espaços públicos e nas transformações dessas aparições nas últimas quatro décadas, em São Paulo, verificando que significados políticos têm emergido.


Nessa trajetória de pesquisa, a noção de política é central, e sempre foi compreendida, em sentido lato, como o jogo de conflitos desencadeados na conformação da cena pública, em sua manutenção e transformação. Em contextos sociais de grande assimetria de poder, reproduzida na estrutura estatal, a política não se resumiria à disputa travada por atores constituídos em terrenos institucionais, mas pressuporia, além dela, um conflito anterior: aquele que se trava, no tecido social, pela definição dos critérios pelos quais os grupos sociais podem ser considerados legítimos. Pensar a política a partir das periferias urbanas, portanto, implica estudar as formas de construção da legitimidade de atores e ações tanto no tecido social quanto nas figurações do debate público e, finalmente, na institucionalidade estatal. A disputa pela legitimidade em cada uma dessas esferas, sendo condição fundamental da conformação de um sujeito ou espaço público, seria dimensão constitutiva também do conflito político.

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